Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Como em conto de Bashevis Singer, nossos demônios costumam ser bem humanos

Autor narra paixão de mulher por um pretenso diabo e reflete sobre papel do autoengano para enfrentar mazelas da vida

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Concluí recentemente um artigo acadêmico sobre as várias funções do demoníaco e do sobrenatural nos contos de Isaac Bashevis Singer.

A ideia desse trabalho foi tomando corpo muito lentamente durante a pandemia a partir de algumas colunas que escrevi para a Folha, na tentativa de compreender o que poderia existir de moderno na maneira como Singer desenvolve a sua literatura através de uma apropriação de temas pertencentes ao folclore dos judeus do Leste Europeu.

Homem com camisa branca e livros no colo
Retrato de Isaac Bashevis Singer em 1969 - Israel Press and Photo Agency (I.P.P.A.)/Dan Hadani Collection, National Library of Israel/Wikimedia Commons

Nos contos de Singer, encontramos desde demônios domésticos, que vivem atrás do fogão ou da lareira —a pregar peças nos moradores de uma determinada residência— a personagens que se fingem de demônio para satisfazer os seus próprios desejos ou, até mesmo, demônios que se apoderam da pena do escritor para contar histórias.

No entanto, à medida que nos familiarizamos com o autor, começamos a perceber que tais expressões do demoníaco e do sobrenatural aparentam romper os limites do meramente folclórico, permitindo-nos, entre outras coisas, desenvolver uma reflexão sobre como as emoções tendem a afetar a nossa relação com a verdade.

Exemplo disso é o que acontece em "Taibele e Seu Demônio", quando Singer conta a história de como um homem, Alchonon, resolve fazer de conta que é uma criatura de outro mundo para conseguir deitar-se com Taibele, uma mulher da sua comunidade que havia sido abandonada pelo marido.

Durante uma noite de Lua nova, Taibele se reúne com as amigas para conversar. Entusiasmada com um livro que adquiriu de um mascate, ela então põe-se a relatar o caso de uma mulher e de um demônio que viviam juntos como se fossem um casal.

Enquanto as amigas discutem o causo, Alchonon, que estava viúvo havia cinco anos e nutria sentimentos por Taibele, escuta a conversa e decide armar um plano. Assim que as mulheres se despedem, ele entra escondido no quintal de Taibele e espera até que ela se recolha. Quando Taibele está finalmente deitada e prestes a cair no sono, Alchonon se despe por inteiro e entra no quarto. Ao se deparar com a silhueta desconhecida, a mulher leva um susto, pergunta de quem se trata e recebe a seguinte resposta:

"Não grite, Taibele. Se gritar, destruo você. Sou o demônio Hurmizah, que domina a escuridão, a chuva, o granizo, o trovão e as feras selvagens. Sou o mal espírito que desposou a moça que você falou hoje. E como você contou a história com tanto gosto, ouvi suas palavras no abismo e fiquei cheio de luxúria em meu corpo".

Hurmizah é bem-sucedido em sua conquista de Taibele e, a partir de então, passa a visitar a mulher duas vezes por semana. Com o tempo, os dois se sentem cada vez mais envolvidos e ela constata que o demônio tem corpo de homem e comporta-se como um ser humano:

"Ele se resfriou e começou a tossir. Uma noite, subiu à cama de Taibele com os dentes batendo e não conseguiu se esquentar por um longo tempo. Temendo que ela descobrisse o engodo, inventou explicações e maldições. Mas Taibele não investigou, nem queria investigar muito de perto. Tinha descoberto havia muito tempo que um diabo tem todos os hábitos e fragilidades de um homem".

Ao nos revelar esses e outros detalhes, o narrador parece deixar claro que Taibele não era tão ingênua quanto Alchonon supôs ao tentar enganá-la. Afinal, para ela, fazia muito mais sentido acreditar no demônio que voltar a levar a mesma vida solitária que passou a ter com o desaparecimento do marido.

A realidade é que Taibele jamais teria condições dividir o mesmo teto com Alchonon, pois o seu companheiro havia partido sem deixar rastro, impedindo-a, segundo o narrador, de obter o divórcio para casar-se novamente.

De diferentes maneiras, Taibele e Alchonon representam elementos marginais de uma mesma comunidade. Taibele, por ser uma mulher abandonada e sem filhos, a ter de lidar com a solidão à qual havia sido condenada pelo tradicionalismo. Já Alchonon, por ser pobre, viúvo e excêntrico, pois recusava-se a aceitar as propostas de casamento que recebia, o que, por sua vez, levantava suspeitas sobre a sua conduta e terminava manchando ainda mais a sua reputação, prejudicando o seu trabalho e fazendo com que ele permanecesse na miséria.

A partir desse conto, percebemos que o demoníaco em Singer, pode, ao mesmo tempo, retratar os mecanismos de controle social e as estratégias de defesa arquitetadas pelo indivíduo na tentativa de atuar sobre os seus impulsos e atingir a fruição dos seus mais íntimos desejos.

Alchonon sempre soube que jamais poderia conviver com Taibele abertamente, e o narrador deixa claro, no decorrer da história, que o personagem era simpático à mulher e parecia compadecer-se com o seu destino:

"Não longe da loja de Taibele, havia um poço, e Alchonon ia lá muitas vezes por dia, para puxar um balde de água ou beber um pouco, derramando água pela barba ruiva. Nesses momentos, dava uma olhada rápida em Taibele. Taibele tinha pena dele: por que o sujeito andava por ali completamente sozinho? E Alchonon dizia a si mesmo, toda vez: ‘Ah, Taibele, se você soubesse a verdade’."

Mas, a qual verdade Alchonon se refere? Estaria ele aludindo à fuga do marido de Taibele, aos sentimentos que ele nutre por ela ou pura e simplesmente à identidade do demônio Hurmizah?

A minha hipótese é que o narrador cria nesse trecho uma ambiguidade proposital, convidando-nos a refletir sobre como a mentira e a autossugestão podem nos ajudar a suportar as mazelas da vida.

Aqui, vale a pena ressaltar que as personagens de Singer são, em sua maioria, homens e mulheres que, como Taibele e Alchonon, sofreram perdas, conviveram com o preconceito e vivenciaram tragédias. Isso, por sua vez, faz com que eles optem por acreditar no fantástico e, no mais das vezes, tornem-se espontaneamente reféns de crenças e fantasias.

O que torna "Taibele e Seu Semônio" um texto central para o entendimento do funcionamento da imaginação de Isaac Bashevis Singer é justamente a maneira como o relacionamento entre as suas personagens revela a mecânica que o autor emprega em suas criações, ao fazer uso do folclore e de elementos fantásticos para ressaltar a importância de reconhecermos que, por mais que tentemos nos convencer do contrário, a fronteira entre a razão e a emoção —ou seja, o irracional— permanece impossível de ser determinada com clareza.

Somos inclinados à mentira e à autossugestão e, por isso mesmo, os nossos demônios, ao exemplo do de Taibele, permanecem humanos, demasiadamente humanos.

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