A Relicário acaba de lançar no Brasil uma coletânea bilíngue de poemas escritos por Hannah Arendt, "Também Eu Danço".
Alguns dos poemas já haviam sido publicados anteriormente em biografias, diários e volumes de cartas, como na correspondência entre Arendt e Martin Heidegger. Agora esse material já conhecido, mais outros poemas inéditos, é reunido em um só volume.
As 71 poesias da coletânea foram escritas e retrabalhadas pela filósofa ao longo de quase quatro décadas, dando-nos, assim, uma ideia de como a produção poética se comunica com alguns eventos marcantes da vida de Arendt, tal como o seu relacionamento com Heidegger e a morte do seu amigo Walter Benjamin.
Entre os poemas de juventude encontramos também algumas reflexões da autora sobre si mesma. Por exemplo, na segunda estrofe da composição que dá título à coletânea, Arendt escreve:
"Eu mesma,
também eu danço.
Irônica e destemida
de nada esquecida
eu conheço o imenso
eu conheço o peso
eu danço, e danço
em brilho irônico."
Esse poema aparenta ter sido originalmente escrito durante o inverno de 1923/24, quando Arendt tinha entre 17 e 18 anos . Ironia, coragem e memória são temas que informam a experiência de vida e a trajetória intelectual da filósofa, sendo, portanto, interessante notar como desde cedo ela busca compreendê-los a partir da poesia.
"Também Eu Danço" conta ainda com um texto de apresentação do tradutor Daniel Arelli, poeta e professor de filosofia na Universidade do Estado de Minas Gerais. Ele comenta como se serviu de traduções em inglês, francês, espanhol e italiano para encontrar soluções para alguns dos problemas enfrentados no seu próprio trabalho.
Outra contribuição importante, e que nos ajuda a navegar os poemas de Arendt, é o posfácio de Irmela von der Lühe, professora de literatura alemã na Universidade Livre de Berlim. Em seu texto, ela examina a longa e duradoura relação de Arendt com a poesia e propõe uma explicação de como a literatura influenciou a maneira de pensar da filósofa, passando a cumprir um papel fundamental no desenvolvimento de sua obra.
Segundo Von der Lühe, o interesse de Arendt pela literatura estaria intimamente relacionado ao seu desejo de compreender o mundo, algo enfatizado pela própria filósofa em sua célebre entrevista de 1964 ao jornalista Günter Gaus, quando ela também comenta a importância da poesia em sua vida.
Leitora atenta e voraz de autores como J.W. von Goethe, Heinrich Heine e Rainer Maria Rilke, Arendt era capaz de recitar de memória alguns dos seus poemas prediletos, tanto em grego antigo como em alemão.
Dois dos relatos de que mais gosto sobre o talento de Arendt para memorizar poesias referem-se a momentos relacionados à sua juventude e velhice. Em seu ensaio, Von der Lühe comenta que, ainda na infância, Arendt costumava cair no choro quando declamava para a família um dos poemas de Heine.
Já em recente biografia da filósofa, publicada em 2021, a pesquisadora Samantha Rose Hill lembra que durante a última viagem de Arendt ao seu país de origem, quando esteve a trabalho no Arquivo de Literatura Alemã, em Marbach, ela muitas vezes fez a alegria dos colegas ao ficar de pé na cantina para recitar versos de Friedrich Schiller, nascido naquela mesma cidade.
Von der Lühe também chama a nossa atenção para como o pensamento de Arendt aparenta sempre ter procurado dialogar com a poesia e a literatura. Neste sentido, ela destaca a importância de obras como "Rahel Varnhagen: A Vida de uma Judia Alemã na Época do Romantismo" (1958), em que a filósofa se utiliza da literatura para refletir sobre questões relacionadas ao processo de assimilação dos judeus na Alemanha do século 19, e da coletânea de ensaios "Homens em Tempos Sombrios" (1968), na qual Arendt comenta vida e obra de autores como G.E. Lessing, Bertolt Brecht, Randall Jarrell, Isak Dinesen e Hermann Broch.
A leitura dos poemas de "Também Eu Danço" serve de mais um complemento para quem se interessa pelo estudo da relação entre literatura e filosofia no pensamento de Hannah Arendt.
Igualmente, o fato de o livro ter sido publicado em edição bilíngue permite que o leitor brasileiro falante de alemão possa refletir a respeito da relação da filósofa com a sua língua materna. Deixo aqui, portanto, a minha dica de leitura para quem ainda não conhece ou deseja conhecer melhor o lado poeta de uma das maiores pensadoras do século 20.
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