Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Livro sobre Mengele nos convoca a lidar com lado sombrio da história

Betina Anton, autora de 'Baviera Tropical', aborda marcas de violência do nazismo com sensibilidade e desenvoltura

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Concluí recentemente a leitura de "Baviera Tropical" (Todavia), livro da jornalista Betina Anton, editora internacional da Rede Globo, sobre os quase 20 anos em que o médico e oficial nazista Josef Mengele permaneceu escondido no Brasil.

Ao deixar a Europa em 1949, Mengele primeiro encontrou abrigo na Argentina de Perón, célebre por oferecer guarida a outros criminosos nazistas, como o piloto Hans-Ulrich Rudel e Adolf Eichmann, este um dos principais responsáveis pelo Holocausto.

Dez anos mais tarde, após o governo alemão emitir uma segunda ordem de prisão contra o médico que havia cometido barbaridades em Auschwitz, como participar da seleção de prisioneiros para as câmaras de gás e desenvolver terríveis experimentos científicos em seres humanos, Mengele resolveu se esconder no Paraguai, onde já havia trabalhado na venda de maquinário agrícola para a empresa da sua família, e lá acabou recebendo a cidadania local com a ajuda de Alejandro von Eckstein, ex-capitão do Exército paraguaio e amigo do ditador Alfredo Stroessner.

A história de como Mengele veio parar no Brasil passa pela captura de Eichmann, em 1960, por agentes do Mossad nos arredores de Buenos Aires. Ainda no Paraguai, ciente de que o cerco estava se fechando e de que ele próprio também corria o risco de ser capturado a qualquer momento, pois o serviço de inteligência israelense estava obtendo pistas mais ou menos precisas da sua localização, Mengele começa a planejar uma nova fuga com a ajuda de Hans-Ulrich Rudel e chega a São Paulo em outubro daquele mesmo ano.

Aqui ele é acobertado por um círculo de amigos e apoiadores formado por um pequeno grupo de imigrantes austríacos e húngaros.

Alguns, como Wolfgang Gerhard, que emprestaria os seus documentos brasileiros ao nazista, sabiam desde o começo com quem estavam lidando. Gerhard era conhecido de Rudel. Na Europa, ele havia pertencido à juventude hitlerista e tinha sido membro do partido nazista. Já no Brasil, ainda adepto da ideologia de extrema direita, era Gerhard quem distribuía o jornal do Partido Socialista do Reich, proibido na Alemanha.

Outros membros do grupo, no entanto, como a professora Liselotte Bossert, afirmam que só tomaram conhecimento da verdadeira identidade de Mengele à medida que os laços de amizade entre eles foram se tornando mais estreitos. A história de Liselotte, inclusive, é o ponto de partida para a escrita do livro, cuja extensa pesquisa levou mais seis anos para ser concluída.

No começo da década de 1980, quando o caso Mengele voltou a receber a atenção da mídia, pois finalmente haviam encontrado o corpo do nazista, morto em 1979, a autora de "Baviera Tropical" tinha seis anos e estudava em uma escola alemã em São Paulo, onde coincidentemente Liselotte era sua professora.

Betina Anton
Retrato de Betina Anton, autora de 'Baviera Tropical' - Aislan Romeu/Divulgação

De repente, tudo mudou. A professora desapareceu no meio do semestre letivo, jornalistas da TV americana visitaram a escola e, aos poucos, os alunos foram se inteirando do que estava acontecendo, mas a ideia de que uma educadora infantil e o seu marido tivessem acobertado um dos criminosos de guerra mais perigosos do século 20 era confusa demais para uma criança tão pequena.

Para além da lacuna que "Baviera Tropical" visa preencher sobre a história dos anos em que Mengele permaneceu escondido no Brasil, acho que um dos pontos mais interessantes do livro está na tentativa da autora em lidar com a lembrança do momento exato em que a violenta e conturbada história do século 20 fez-se presente em sua vida.

No epílogo da obra que já está sendo traduzida para o inglês e também deve, em breve, ser publicada em outros idiomas, a autora comenta que quando era criança e tomava o ônibus para voltar da escola com as irmãs, as pessoas que as encontravam pelo caminho frequentemente saudavam as meninas com um "Heil Hitler!" simplesmente por acharem divertido associar descendentes de alemães ao nazismo.

Para os meus colegas alemães da mesma geração de Betina Anton, a articulação das suas identidades pessoais também passa, quase que inevitavelmente, por uma tentativa de lidar com o passado recente da Alemanha e com a maneira como ele ainda afeta as suas vidas.

"Baviera Tropical" demonstra o quão difícil e necessário é lidar com os aspectos sombrios de uma cultura. A autora, no entanto, o faz com sensibilidade e desenvoltura, e o seu livro nos convoca a fazer o mesmo. Pois o conhecimento ainda é a ferramenta mais eficaz que possuímos se quisermos evitar a perpetuação da violência que muitas vezes informa o nosso passado. Leiam!

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