Descrição de chapéu
Christian Dunker

Em livro póstumo, Contardo Calligaris reflete sobre gozo de carrascos nazistas

'O Grupo e o Mal' oferece uma síntese da trajetória do autor, exemplo de liberdade de pensamento em psicanálise

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Christian Dunker

Psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Autor, entre outros livros, de "Lacan e a Democracia: Clínica e Crítica em Tempos Sombrios" e "Uma Biografia da Depressão"

[RESUMO] Obra recém-lançada de Contardo Calligaris, resultado de sua tese de doutorado, propõe que o masoquismo, variante fundamental da noção de narcisismo, é o fator determinante do gozo de ser um instrumento. Essa interpretação ajuda a explicar a crueldade de pessoas em tese inofensivas em situações de subordinação a papéis sociais rígidos, como os algozes em campos de concentração durante o Holocausto, e opera uma reversão crítica das categorias de perversão e fetichismo.

Durante muitos anos, insisti com Contardo para que ele publicasse sua tese de doutorado, realizada em Marselha. Com seu estilo humorado e irônico, ele sempre respondia: algo tem de ficar para a posteridade. Apesar das apresentações periódicas sobre o andamento de suas ideias, em Berkeley e Paris, mas também em São Paulo, Porto Alegre e Bahia, o conjunto das inovações e críticas trazidas permanecia fragmentado para o leitor brasileiro.

De fato, ele estava certo. Não haveria posteridade mais urgente para receber sua leitura da perversão social que o Brasil de nossos dias.

Retrato de Contardo Calligaris feito pelo fotógrafo Bob Wolfenson
O psicanalista Contardo Calligaris retratado por Bob Wolfenson em 2007 - Divulgação

O livro é composto de quatro movimentos, que refletem circunstâncias de escrita e interlocutores diferentes, desde o início da tese, com Roland Barthes e Jacques Lacan nos anos 1970, até sua defesa em 1991, além de breves revisões antes de sua morte, em 2021. O conjunto oferece, assim, uma síntese da sua trajetória e expressa a transformação da sua forma de pensar a psicanálise nos três continentes onde ele a praticou.

"O Grupo e o Mal", editado pela Fósforo, começa investigando a linguagem do nazismo e a forma como ele pode ser definido a partir do laço social envolvendo executores e vítimas nos campos de concentração. Mais que entender como Auschwitz foi possível, a questão é reconhecer o quanto disso permanece entre nós, como protótipo de um funcionamento social generalizado, latente, sempre passível de reaparecimento sob outras roupagens.

A investigação parte dos relatos de membros do 101º Batalhão de Reserva da Polícia Alemã, que exterminou mais de 38 mil judeus, passa pelo massacre de Józefów, na Polônia, e ruma para um conjunto de perguntas que não podem ser respondidas nem pela soma das patologias individuais nem pela banalidade do mal.

O batalhão era formado de pessoas comuns, educadas antes da ascensão de Hitler, com baixos graus de convicção antissemita e com a liberdade para recusar a tarefa. Por que, então, tantas se engajaram no que elas mesmas chamavam de "trabalho duro" e de "missão tão difícil", cumprindo de modo tão zeloso as ordens de extermínio?

A ideia de que todos, aprisionados e perpetradores, faziam parte de uma gigantesca missão de trabalho, como peças de uma máquina sem finalidade que não a destruição, suspendia "argumentos racionais e razões políticas fundadas essencialmente na aplicação prática de um mito" (p. 41). Soldados que demonstrassem algum tipo de vilania, crueldade ou gosto pelo extermínio eram criteriosamente retirados da tarefa, que deveria ser cumprida de modo distanciado, higiênico e sem envolvimento pessoal.

Isso fez Primo Levi perguntar: como alguém sem ódio ou ressentimento pode bater e maltratar outra pessoa? Responder a essa pergunta implica entender como e por que pessoas comuns, em tese inofensivas, agem de modo tão cruel e indiferente quando a vida institucional estabelece, como em uma peça de teatro, relações entre pessoas que se subordinam completamente ao manual de instruções que define seus papéis.

Seria preciso postular uma identificação muito específica, para além do funcionamento em forma de massa, dirigida por um líder e cooptada contra um inimigo, para entender que tipo de gozo os envolvidos extraem dessa montagem.

Sabe-se que isso demanda um conjunto de identificações de grupo (narcisismo), no interior do qual a verdade deixa de produzir consequências esperadas (denegação), indivíduos funcionam como personalidades dissociadas (clivagem) e o sujeito se apreende como um objeto de sacrifício para o outro (fetichismo). A junção dessas quatro condições determina a paixão por ser um mero instrumento.

Aqui, o texto enfrenta o difícil problema que é justificar a existência de uma forma de gozo que contraria a gramática corrente dos benefícios econômicos e dos ganhos ideológicos, bem como o modelo de sujeito baseado na racionalidade da relação entre meios e fins, na consecução e autoconservação de seus interesses.

Nada disso se passa na paixão instrumental. Nela, o fetichista substitui a parte pelo todo, o destino pelo caminho, a posição dessexualizada pelo prazer local da obediência. Para justificar teoricamente essa hipótese, o texto navega entre diferentes leituras do conceito de narcisismo, mostrando como, longe da esfera egoísta, da bolha fechada ou do espelho de si, o narcisismo tem a estrutura de ilusão, miragem que precisa ser continuamente reposta.

Para suturar o hiato entre o que sonhamos ter sido (eu ideal) e aquilo que nos orienta para o que queremos ser (ideal de eu), se supõe um momento fetichista. Nesse nível, ele não é uma patologia, mas uma estrutura constitutiva do sujeito, referida à experiência de ser um objeto que positiva a falta no outro, a sutura da distância entre as figuras imaginária e simbólica do narcisismo.

Valorizando os últimos textos de Freud e confrontando-os com as teses lacanianas sobre o falo, como marcador da falta e da ausência, Contardo chega a uma leitura original da noção de narcisismo, capaz de compreender o masoquismo como uma de suas variantes fundamentais. Disso, se conclui que é o masoquismo, como expressão generalizada de sacrifício ao outro —não o sadismo, como prática de encarnação violenta da identificação com o pai e defesa contra a castração—, o fator determinante do gozo de ser um instrumento.

A terceira parte do livro, aparentemente terminada já em terras brasileiras, traz os casos clínicos de Foudel, que "precisava" oferecer sua esposa para outros, enquanto se masturbava sem gozar, e Lydie, que sofria com a descontinuidade da montagem sexual pela qual ela se sacrificava a qualquer outro para manter o laço assexual com seu marido —ambos marcados pela mesma paixão burocrática.

Ser ordenado como instrumento de um saber anônimo, se proteger da vergonha, da humilhação ou da culpa, encenar um simulacro masoquista e gozar como fetiche do outro: eis aqui as quatro condições de gozo descritas nos perpetradores nazistas.

No entanto, onde muitos entenderiam se tratar de um diagnóstico comum de perversão social, encontramos justamente a reversão crítica da categoria de perversão. Há fetichismo generalizado, mas não perversão, a não ser que se redefina a perversão não mais como um tipo de gozo desviante, mas como uma montagem social.

Não há deriva da clínica para o social porque, desde sempre, a categoria de perversão é apenas e tão somente social, ou seja, é um artefato jurídico, moral e teológico criado para generalizar coercitivamente um tipo de fantasia. Separar o conceito de fetiche da noção inútil de perversão é análogo à separação que Marx fez entre fetichismo da mercadoria, como patologia das trocas sociais, e a prática sexual ou simbólica do fetichismo supostamente presente em pessoas transgressivas e povos incivilizados.

Em vez de patologizar o fenômeno social, atribuindo aos perpetradores falta de empatia, identificações sintomáticas ou alienações dissociativas, é o fenômeno social que reconfigura a psicopatologia psicanalítica. Contrariamente ao senso comum, que acredita que patologias psíquicas absolvem a responsabilidade dos sujeitos, isentando-os de consequência política ou moral sobre seus atos, a hipótese da paixão instrumental mostra que essa decisão pode se apresentar, para qualquer um, no cotidiano mais ordinário, repleta de implicações.

Se não é o desvio da norma que define o patológico muito menos a transgressão ou o exotismo dos prazeres, Contardo abre, na última parte do livro, o programa de pesquisa que viria a desenvolver em torno da normalopatia, isto é, o estudo de como e a que custo conseguimos sobreviver aos modos patológicos de incorporação da norma. O pior diagnóstico possível, como ele sempre dizia, é a normalidade, pois é a única que não admite cura.

Aqui, a escrita se torna mais irreverente, combinando alta erudição com exemplos prosaicos, discutindo e contrapondo autores de escolas psicanalíticas diversas, mas mantendo o diálogo tenso, nem incorporativo nem subordinativo. Seu estilo onívoro e sua trajetória de reformulações continua a ser um exemplo de pesquisa e de liberdade de pensamento em psicanálise, como se vê no ótimo trabalho editorial de Octavio Souza e na excelente introdução de Jurandir Freire Costa.

Contardo ensinou gerações de psicanalistas a escutar com coragem e a não ceder à obediência doutrinária. Ele praticava boa clínica como crítica social feita por outros meios, e é a ele que podemos atribuir, justa e agradecidamente, parte da pujança crítica da psicanálise brasileira de nossos dias.

O grupo e o mal: Estudo sobre a perversão social

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.