Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Livros

Romance questiona se é possível romper círculo vicioso do trauma

Em 'Passeio com o Gigante', de Michel Laub, líder judeu se depara com consequências de apoio a candidato extremista

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Lançado há pouco mais de uma semana pela Companhia das Letras, "Passeio com o Gigante", o novo romance de Michel Laub, nos oferece uma rara oportunidade de reflexão sobre alguns dos temas que marcaram a política nacional durante um período que compreende desde a ascensão da extrema direita ao poder até a pandemia de Covid-19.

O livro conta a história de Davi Rieseman, empresário, advogado e líder comunitário judeu que, durante as eleições presidenciais de 2018, se envolve na campanha de um candidato que se posicionava como sendo simpático a Israel.

Retrato de Michel Laub, autor de 'Passeio com o Gigante' - Adriano Vizoni/Folhapress

O que motiva o envolvimento de Rieseman na campanha é a sensação de que o candidato e os seus apoiadores evangélicos talvez partilhem de uma experiência de mundo semelhante à dos próprios judeus. Isto é, marcada tanto pela vivência do preconceito religioso como pela tentativa de superação das suas sequelas a partir de estratégias como a do judaísmo musculoso de Max Nordau —citada pelo personagem— que vislumbrava se contrapor ao estereótipo do judeu fraco, hiperintelectualizado e incapaz de se defender por conta própria.

Isso fica evidente quando Rieseman, que atua como representante de um movimento juvenil judaico, comenta sua visita aos jovens evangélicos que frequentam os acampamentos organizados pela pequena comunidade do Pastor Duílio:

"Esse povo das igrejas, meus amigos judeus, pensem na inteligência deles. No caminho que eles fizeram de uns trinta anos para cá, vinte anos, vocês não veem nenhuma semelhança entre a trajetória deles e a nossa? A gente tem um Estado agora, e eles estão a caminho de ter algo parecido."

Ao forjar uma aliança estratégica com os evangélicos e, mais tarde, fundar conjuntamente um instituto para o acompanhamento e a melhoria de vida de pessoas com deficiência, Rieseman se esquece de que toda comparação é imperfeita e que as circunstâncias que motivaram o judaísmo musculoso de Nordau no século 19 já não são mais as mesmas que enfrentamos atualmente.

É que para o personagem a história aparenta simular o mecanismo de um trauma, ou seja, os acontecimentos, ainda que novos e distintos para o observador desinteressado, sempre acabam por provocar na vítima a mesma resposta do passado, como se ela não pudesse jamais vislumbrar uma maneira de romper com o círculo vicioso das repetições.

Rieseman só começa a sentir as consequências do seu engajamento político mais tarde, quando a sua esposa se torna uma das mais de 700 mil vítimas da pandemia no Brasil. É a partir de uma visita a um hospital que ele então passa a ser tomado de assalto pela própria consciência.

Durante essa visita, realidade e fantasia se misturam. Acompanhado por um coro integrado por figuras da história judaica, como Simão Bar Kochba e Olga Benário, bem como por familiares, amigos e desconhecidos que evocam no personagem a necessidade de confrontar os fatos, Rieseman revive o seu discurso da cerimonia de arrecadação de fundos para a campanha do seu candidato em 2018, o nascimento da filha deficiente e a morte da esposa, cujo fantasma questiona:

"Você reuniu os amigos em dois mil e dezoito, e falou de força e fraqueza, e de tragédia e comédia, e do dinheiro que define isso tudo no fim. Os seus amigos ouviram e aplaudiram o discurso, mas você já pensou no motivo? Eu acho que já. Foi por isso também que você se sentiu morto."

Como um herói trágico, Davi erra por confiar demais na própria astúcia. As consequências do seu erro são desastrosas, mas a intervenção do coro e, principalmente, a fala da sua esposa, obrigam-no a finalmente contemplar uma imagem mais precisa de si mesmo:

"Você caiu nessa armadilha tantas vezes, achar que dizia a sua verdade quando estava dizendo a verdade dos outros. Você achou que tinha convencido os seus amigos, mas foram eles que convenceram você muito antes."

"Passeio com o Gigante" é uma leitura incômoda como quase toda boa leitura deve ser. Há momentos em que nos sentimos sufocados, como se o livro esperasse obter uma confissão de culpa, tanto do seu protagonista como do leitor.

A menção à tragédia, no entanto, e a maneira como alguns dos seus princípios parecem governar a trama, oferecem ao romance de Laub a magnanimidade que todo artista deve cultivar ao tratar de temas tão incertos, como a política, as paixões e tantos outros assuntos que regem a vida dos homens.

Pois, no fim de contas, mesmo ao criar coragem para confrontar a si próprio, Rieseman, como cada um de nós, pode até se esforçar para não repetir os próprios erros ou para não permanecer refém de um trauma, mas jamais poderá ter plena certeza de que isso é de fato humanamente possível.

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