Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu União Europeia

Região da Alemanha guarda marcas da história de judeus

Às margens do Reno, judaísmo europeu começou a tomar corpo há pouco mais de mil anos

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Estou em Mainz, na Alemanha. Terra de Johannes Gutenberg (c. 1400-1468), inventor da prensa móvel, sem a qual, talvez, não teríamos os jornais de domingo e as nossas tão amadas bibliotecas domésticas.

Cheguei por aqui faz uma semana para concluir uma pesquisa junto à universidade local e transformar a minha tese de doutorado em livro. Conheci o campus, recebi as chaves do meu escritório, fiz a minha carteirinha da biblioteca e me matriculei em um curso de alemão para tentar colocar a gramática em dia.

Vista do Reno em Mainz, na Alemanha - Kirill Kudryavtsev - 9.jan.24/AFP

Também revi alguns amigos da época do doutorado e juntos desbravamos a cidade que, para o meu contentamento, fica às margens do Reno, o único rio que —com exceção daquele ainda mais bonito que corre pela minha cidade, o Capibaribe— habita o meu imaginário com as suas histórias de seres fantásticos, rabinos, filósofos, poetas e compositores.

Assim como quem viveu o Recife não consegue desvincular o Capibaribe da poesia de João Cabral de Melo Neto nem dos engenhos de açúcar ou dos fantasmas de Gilberto Freyre, bem como da música de Chico Science e Reginaldo Rossi, por aqui quem convive com o Reno quase sempre tende a evocar os versos de Heinrich Heine, as melodias de Robert Schumann e a história da presença judaica na Europa Central.

Foi às margens do Reno que teria surgido a língua ídiche e onde, há pouco mais de mil anos, o judaísmo europeu começou a tomar corpo. Em Mainz, bem próximo ao campus da universidade, encontramos um dos cemitérios judaicos mais antigos da região.

Nele, nos deparamos com uma pedra memorial em homenagem ao rabino Gershom ben Judah (960-1040), considerado um dos fundadores do judaísmo de tradição asquenaze, própria das populações da Europa Central e do Leste. Foi o rabino Gershom quem, entre outras coisas, instituiu a proibição com relação à poligamia.

Já em Worms, que fica aproximadamente a 40 quilômetros de onde eu estou, além do mais antigo cemitério judaico ainda preservado do continente europeu, provavelmente estabelecido no começo do século 11, encontramos outros sítios que atestam a longa, profícua e muitas vezes trágica história das comunidades judaicas da região.

A sinagoga de Worms, por exemplo, considerada a mais antiga de todo o país, serve-nos de ilustração para esse drama. Inaugurada em 1034, ela já passou por inúmeras reconstruções e restauros em virtude de seguidos assaltos.

Essa sinagoga que, durante a Idade Média, recebeu estudiosos como Rashi (1040-1105), ainda hoje festejado pelos seus comentários à Bíblia Hebraica e ao Talmud, foi destruída pela primeira vez em 1096, no decorrer da Primeira Cruzada. Mais tarde, foi severamente danificada por ocasião dos pogrons de 1349 e de 1615, além de haver sofrido um incêndio em 1689.

Novamente restaurada no início do século 18, a sinagoga tornou a ser destruída em 1938, durante a Noite dos Cristais e, mais recentemente, em 2010, foi alvo de nova tentativa de incêndio que, dessa vez, para o alívio de todos, não provocou danos substanciais ao prédio.

Em 2021 os sítios judaicos de Mainz, Worms e Speyer —outra cidade que faz parte desta região à beira do Reno— foram finalmente reconhecidos pela Unesco como patrimônio da humanidade.

Mas não só de passado é feita a vida judaica nessas cidades outrora conjuntamente reconhecidas como uma espécie de pequena Jerusalém do Reno. Mainz, por exemplo, abriga uma população judia de cerca de mil habitantes. Antes da Segunda Guerra Mundial, no entanto, 2.750 judeus moravam aqui. Após o Holocausto, uma nova comunidade se formou a partir de um grupo de 80 pessoas.

A comunidade de Mainz voltou a crescer a partir do final dos anos 1980, em fato da imigração dos judeus da antiga União Soviética. Assim, em algumas das atividades realizadas na sinagoga, como durante o seder de Pessach, do qual participei logo ao chegar à cidade, muito do que é dito pelo rabino em alemão costuma ser imediatamente traduzido para o russo.

Desse modo, ninguém se perde na hora da comunicação. A arquitetura do novo prédio da sinagoga de Mainz, inaugurado em 2010, também acaba explorando detalhes que tanto remetem à história dos judeus na cidade quanto ressaltam o presente, permitindo uma maior interação entre veteranos e recém-chegados à comunidade.

Nos próximos finais de semana, pretendo seguir o Reno e viajar até Worms e Speyer para aprender um pouco mais sobre cada um desses lugares. Por enquanto, aproveito cada minuto em Mainz, onde, em razão de tudo que acabei de relatar, já me sinto como se estivesse em casa.

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