Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Descrição de chapéu América Latina Mercosul

Historiadora uruguaia percorre lutas políticas da América do Sul

Virgínia Martinez narra a saga da família do escritor Rafael Barrett, celebrado por Borges

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"Se acabó el recreo", repete em tom jocoso a minha anfitriã, Virgínia Martinez, historiadora, escritora, produtora e diretora de importantes documentários retratando a ditadura uruguaia.

A primeira vez que pronunciou o bordão do chamado Partido Militar foi quando lhe perguntei como estava o Uruguai de Luís Lacalle Pou, eleito em 2019 por uma coalizão conservadora, após 15 anos da progressista Frente Ampla.

Jair Bolsonaro e o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, no Palácio do Planalto, em Brasília - Pedro Ladeira - 3.fev.21/Folhapress

A casa de Virgínia, uma construção antiga e elegante, herança espanhola, fica no parque Rodó, a poucas quadras da sede do Mercosul, um prédio histórico defronte do Prata. Nunca havia me sentido assim: sul-americana, inserida num contexto que vai além das nossas fronteiras.

No Brasil, vivemos —a maioria de nós— de costas para o sul do continente, olhando para uma miragem: os EUA. Já os uruguaios soam atentos às glórias e derrotas que nos une, no passado e no presente.

Em "La Vida Es Tempestad", livro que lançou em 2017, pela Banda Oriental, Virgínia nos propõe exatamente uma travessia pelas lutas políticas e sociais que entrelaçam a América do Sul. A obra percorre a saga da família de Rafael Barrett, o grande escritor espanhol radicado no Paraguai. Celebrado por Jorge Luis Borges, Barrett é considerado o fundador da cultura paraguaia contemporânea e o inventor da crônica social latino-americana.

Na obra de Virgínia, três gerações: Rafael Barrett, seu filho, Alejandro, e a neta, Soledad. Em comum, um caminho pontilhado por golpes de Estado e ditaduras, lutas sociais e resistência, derrotas políticas e exílios, além das traições.

Entre o desembarque de Rafael Barrett no Paraguai, em 1904, e o assassinato de Soledad pela ditadura brasileira, em 1973, desenrola-se nas páginas a nossa história, a história sangrenta do século 20 na América do Sul.

Mulher com chapéu
Retrato de Soledad Barrett - Reprodução

Soledad e Anselmo

A saga termina em Recife, numa emboscada armada pelo delegado Fleury, o chefe do Dops de São Paulo. Seguindo as mudanças e exílios que as tormentas políticas impuseram à sua família, Soledad se tornara, aos 15 anos, um símbolo da luta contra o avanço nazifascista no Uruguai do começo da década de 1960. Filiada à União de Juventudes Comunistas, fora sequestrada por um comando de extrema direita e teve as pernas tatuadas com suásticas.

Nos anos que se seguiram, empreenderia um périplo. Primeiro, vivera em Moscou. Depois, radicara-se em Cuba, onde se casou e teve uma filha com um marinheiro brasileiro, José Maria Ferreira de Araújo, integrante da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR de Carlos Lamarca.

Naquele tempo, Havana era o destino para o treinamento de guerrilheiros dispostos a lutar contra as ditaduras militares que pipocavam na América Latina. O casamento não durou. De regresso ao Brasil para integrar uma ação da VPR, José Maria desapareceu numa rua da capital paulista.

Em dezembro de 1970, enfim, chegou a vez de Soledade de participar de uma ação contra a ditadura brasileira. Desembarcou em Recife para trabalhar na organização do retorno de um grupo de combatentes da VPR treinados em Cuba.

Na capital pernambucana, acabou traída pelo coração, ao se apaixonar pelo famoso Cabo Anselmo, infiltrado no grupo pelo delegado Fleury. O Cabo Anselmo a entregou para a morte, aos 28 anos.

Fim do recreio

A olho nu, o Uruguai e o Brasil de hoje parecem distantes. Andando pelas arborizadas ruas de Montevidéu, o que se vê é uma sociedade sóbria, igualitária, que não se rendeu ao modelo norte-americano de consumo e ostentação.

O comércio é tímido, o casario, preservado, e tudo remete a outro tempo, um tempo mais lento e mais generoso. Invejável como os uruguaios se mantém à parte da orgia capitalista. Aliás, agora entendo José Mujica e o seu Fusca.

Nas questões de política, porém, aqui sabe-se bem: as coisas desgraçadamente se emparelham. As ditaduras terminaram em meados da década de 1980. Depois vieram os anos de redemocratização.

No começo dos 2000, iniciou-se, em ambos os países, um ciclo de governos de esquerda. No Brasil, o PT. No Uruguai, a Frente Ampla, com três mandatos consecutivos: Tabaré Vázquez, José Mujica e, de novo, Tabaré Vázquez.

Em 15 anos, a Frente Ampla promoveu importantes conquistas. Nesse período, o Parlamento legalizou o aborto, aprovou uma lei legalizando o casamento gay e também regulamentou o consumo, o plantio e o comércio de maconha. A taxa de pobreza caiu de 30% para 8%, e a indigência praticamente desapareceu. Na vanguarda dos direitos civis, o Uruguai parecia ter se tornado o oásis do Cone Sul.

Nas eleições de 2019, porém, "se acabó el recreo". Não por acaso, Jair Bolsonaro festejara e prestigiara a posse de Lacalle Pou. Este não chega a ser da laia do brasileiro, vem de uma linhagem do tradicional Partido Branco, sabe comer "con cuchillo y tenedor".

Todavia, se a história ensinou algo aos intelectuais uruguaios, é a prestar atenção em Brasília. Na noite que saiu o Datafolha, prenunciando uma possível vitória de Lula no primeiro turno, houve brinde no parque Rodó.

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