Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Biógrafo é leal a Lula sem perder de vista honestidade intelectual

Imparcialidade só existe na cabeça dos puros, e Fernando Morais diz a que veio logo de saída

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Talvez eu devesse estar seguindo a regra que eu mesma me impus: escrever sobre livros velhos, aqueles que não merecem o esquecimento, resgatando-os da última prateleira da estante. Porém, cometi um grave erro na semana de folga. Entre o Natal e o Ano-Novo, eu me atraquei com "Lula", o aguardado livro de Fernando Morais.

Como escreve bem o meu conterrâneo. Além da fluência, do ponto apertado da costura, Morais é um arqueólogo, um escavador de palavras, de expressões, além de um observador com raro senso de humor. A mão firme nos pega na primeira página e nos conduz à última, sem vacilar, sem permitir que tiremos os olhos das páginas.

Fora lendo Fernando Morais e Ruy Castro, os dois mestres que reinventaram o gênero no Brasil, que eu me apaixonei por biografias. Gosto de pensar nelas como "romances de não ficção", usando a definição de Truman Capote para esta mistura de jornalismo com literatura, de fato com fabulação.

A Morais, não falta imaginação. Obviamente fabular, aqui, não é inventar, mas ser capaz de calçar os sapatos do biografado, pisando as esquinas que ele pisou.

Antes mesmo de chegar às livrarias, "Lula" já vinha causando barulho nas redes sociais, num inflado debate sobre a imparcialidade do autor. Para começo de conversa, nenhum autor é exatamente imparcial. Imparcialidade só existe na cabeça dos puros.

Qualquer um que passe anos e anos envolvido com um personagem estabelece algum tipo de pacto com ele, esteja este vivo ou morto. O que não se pode perder de vista —e acho que Morais não perde— é a honestidade intelectual.

Fernando Morais fez uma clara escolha: a lealdade. Da primeira à última linha, é leal a Lula. Mas não larga mão, em nenhum momento, dessa vital honestidade. Logo de saída seu livro já diz a que veio, aliás. Como toda biografia é um recorte de uma vida. No caso, um recorte amoroso. Leia a obra pelo que é e não pelo que se gostaria que fosse seria o meu conselho.

Como um Hitchcock

Nas primeiras 160 páginas, Morais se dedica ao tempo entre a prisão do ex-presidente, em 2018, e sua libertação, em fins de 2019. Nelas, encontramos o Fernando Morais de hoje, calçado com luvas de boxe. Não há concessão para o outro lado. Pelo contrário, ele se joga no meio da briga. Páginas de muito valor histórico, justamente pela temperatura.

Quando o livro adentra o passado, reconstruindo a trajetória do herói, no sentido de Joseph Campbell, aparece outro Fernando Morais, o jornalista, militante do PCB, que viu tudo acontecer e que tem muitos detalhes a acrescentar, apresentando uma visão mais crítica.

Em algumas cenas, ele surge em pessoa, como um Alfred Hitchcock das biografias. Numa dessas cenas, a propósito, tenta se camuflar, referindo-se a si próprio como "um jovem jornalista". Na verdade, o jovem jornalista era ele mesmo, que escapou da morte por um triz.

Na tarde de 24 de outubro de 1975, agentes do DOI-Codi apareceram na pequena editora que Samuel Wainer fundara em sociedade com Domingo Alzugaray e Luís Carta. Para despistá-los, o trio serviu-lhes cafezinho, puxou assunto, enquanto o barbudo repórter da casa escapava pelos fundos. Na mesma noite, outro jovem jornalista era preso: Vladimir Herzog, o Vlado. Na manhã seguinte, Herzog seria assassinado.

"Um brasileiro igualzinho a você"

O livro termina nas tumultuosa eleição de 1982, quando Lula, candidato ao governo de São Paulo, perdeu até o rumo de casa —experimentando a primeira morte e a primeira ressurreição. A campanha dos candidatos do recém-nascido Partido dos Trabalhadores, aliás, fora hilária.

Obedecendo aos ditames da Lei Falcão, um entulho da ditadura ainda em vigor, os programas eleitorais de TV se resumiam a uma foto do postulante ao cargo, com a voz em off do locutor lendo um breve currículo.

Para se aproximar do seu eleitor, o PT escolhera como mote uma frase de efeito: "Um brasileiro igualzinho a você". O problema era colar o slogan à biografia os candidatos petistas.

"Nossas campanhas pareciam prontuários policiais", contou Lula. "A do Genoino era: preso quando fazia guerrilha no Araguaia. Torturado e condenado a não sei quantos anos de prisão. E, no fim, vinha a voz: um brasileiro igualzinho a você".

Sua própria ficha corrida não ficava atrás: "Luiz Inácio Lula da Silva: Ex-tintureiro. Ex-engraxate. Ex-metalúrgico. Ex-dirigente sindical. Ex-preso político. Um brasileiro igualzinho a você".

Apurados os votos, ele amargou um quarto lugar, com menos de 1% dos votos. O mundo parecia ter desabado sobre sua cabeça. Considerado carta fora do baralho, ouviu de Fidel Castro o profético conselho: "Você não tem o direito de abandonar a política".

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