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As eleições brasileiras e a América Latina: descontinuidade e descontentamento

Torna-se imprescindível uma atenção brasileira maior para a América Latina

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Arthur Ituassu

Professor de Comunicação Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pesquisador associado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD)

Infelizmente, nós no Brasil temos o péssimo hábito de nos importarmos pouco com o que acontece na América Latina. No campo político brasileiro, a América Latina é relacionada em geral ao perigo da "venezuelização" chavista ou às ondas de governos de esquerda que, vez por outra, parecem se fazer presente na região.

Sob a ameaça do populismo autocrático, encarnado no presidente Jair Bolsonaro e seus ataques às instituições, em especial ao STF (Supremo Tribunal Federal), comentaristas de ponta citam os exemplos da Rússia, de Vladimir Putin, da Hungria, de Viktor Orbán, da Turquia, de Recep Tayyip Erdoğan, mas não falam de Naiyb Bukele, em El Salvador. Em maio de 2021, o popular presidente salvadorenho removeu de uma só vez, com o apoio do Parlamento, cinco juízes da Suprema Corte e o Procurador-Geral, estabelecendo amplo controle sobre o Poder Judiciário no país.

Há vários pontos de intersecção importantes entre os contextos brasileiro e latino-americano. Discuto aqui apenas um, em relação aos resultados do primeiro turno das últimas eleições no Brasil, realizado em 2 de outubro. Na ocasião, os eleitores foram às urnas escolher um presidente, 27 governadores, 513 congressistas, 27 senadores e centenas de representantes nos parlamentos estaduais. A presidência e 12 cargos de governador ficaram para ser decididos em um segundo turno, no dia 30 do mesmo mês.

Lula acena para apoiadores durante comício em Guarulhos (SP); Bolsonaro cumprimenta apoiadores em comício em Duque de Caxias (RJ) - Miguel Schincariol/AFP e Carl de Souza/AFP

O ponto em comum é o surgimento e a consolidação de novos atores na arena política, substituindo aqueles de perfil mais tradicional. Vale lembrar que o segundo turno das eleições peruanas de 2021 foi disputado por duas candidaturas de fora do establishment: Keiko Fujimori e Pedro Castillo, que acabou vencedor sem nunca ter sido eleito para qualquer outro cargo administrativo na política peruana.

No Chile, novamente no ano passado, dois políticos nada tradicionais também disputaram o segundo turno: Gabriel Boric e José Antonio Kast. Boric, oriundo de um partido criado em 2017, venceu com 55% dos votos. A candidata Yasna Campillay, apoiada pelos tradicionais PDC (Partido Demócrata Cristiano), PPD (Partido por la Democracia) e PS (Partido Socialista), obteve apenas 11% dos votos no primeiro turno. O PDC, o PPD e o PS constituíram a famosa "concertación", que governou o Chile entre 1990 e 2010.

Na Colômbia, já em 2022, o embate final ficou entre Gustavo Petro e Rodolfo Hernández, da peculiar Liga de Gobernantes Anticorrupción. Petro, chamado de "o primeiro presidente de esquerda da história colombiana", e sua vice-presidente Francia Márquez, uma ativista negra, feminista e defensora do meio-ambiente, venceram com pouco mais de 50% dos votos. O próprio Nayib Bukele foi eleito presidente de El Salvador em 2019 rompendo com 30 anos de domínio dos partidos tradicionais no país (Arena e FMLN).

Ora, o que tudo isso tem a ver com a situação brasileira?

Vale notar que a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 rompeu com o domínio do PT (Partido dos Trabalhadores) e do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), que disputaram a Presidência no Brasil desde 1994.

Apesar de ter sido deputado federal desde 1991, Bolsonaro sempre foi um político minoritário, defensor do regime militar e da tortura, e que aparece na cena maior da política brasileira com uma plataforma antissistema e reacionária, "para mudar tudo isso que está aí". Após uma performance catastrófica durante a pandemia do Covid-19, que causou a morte de quase 700 mil brasileiros, Bolsonaro chegou ao segundo turno tendo recebido mais de 50 milhões de votos no último 2 de outubro.

É preciso perceber também o que acontece no Congresso Nacional brasileiro. Entre os dez deputados federais mais votados do país, não há nenhum do PT ou do PSDB, mas há figuras como Nikolas Ferreira, um youtuber de extrema direita que fará seu primeiro mandato na Casa tendo recebido quase 1,5 milhão de votos em Minas Gerais.

Há também Guilherme Boulos, outro que fará seu primeiro mandato, tendo recebido pouco mais de um milhão de votos em São Paulo. Boulos é, de fato, um novo expoente da esquerda brasileira, oriundo de um pequeno partido que há poucos anos recebia votos apenas em alguns bairros liberais do Rio de Janeiro (PSOL).

Se olharmos do ponto de vista histórico, vemos que, entre as eleições de 2010 e 2022, o PSOL de Guilherme Boulos cresceu 366% no Congresso Nacional, tendo passado de três assentos para 14. Enquanto isso, o PSDB caiu mais de 75%, passando de 54 assentos para apenas 13 eleitos nas eleições deste ano. O PL (Partido Liberal), encampado por Jair Bolsonaro para o pleito, elegeu 99 deputados, um crescimento de 141% em relação a 2010.

Acredito que uma boa explicação para o que sucede se encontra no último relatório Latinobarómetro 2021, que entrevistou cidadãos de 17 países da América Latina entre 26 de outubro e 15 de dezembro de 2020, com mais de 19 mil entrevistas feitas presencialmente e outras 1200 via internet.

O relatório aponta para um enorme descontentamento com as elites políticas tradicionais e partidos obsoletos que, desde a transição democrática, foram incapazes de lidar com os problemas crônicos da região como a desigualdade, a corrupcão e a violência. Nesse contexto, as consequências para a democracia são claras, com uma queda de 14 pontos percentuais no apoio aos regimes democráticos latino-americanos entre 2010 e 2020.

Com isso, ao menos três questões podem ser ressaltadas como pontos a serem necessariamente refletidos a partir do que foi aqui exposto. Em primeiro lugar, fica claro que não basta derrotar plataformas antidemocráticas no Brasil ou na região como um todo. É preciso também fazer com que as instituições trabalhem para o povo (e não somente para as elites). Hoje, ao menos no contexto brasileiro, defendemos instituições que têm se mostrado incapazes de contemplar de forma universal os direitos básicos do cidadão no país, e fazemos isso apenas porque não temos escolha melhor.

Em segundo lugar, é importante perceber o que muitos autores entendem como mudanças na cultura política que ocorrem em paralelo às transformações na infraestrutura comunicacional. As mídias digitais, para o bem e para o mal, trouxeram novas formas de participação e novos formatos de informação política, que colocam pressão sobre os partidos tradicionais frente a novos atores mais aptos às dinâmicas da internet.

Por fim, torna-se imprescindível uma atenção brasileira maior para a América Latina, de modo a se construir instâncias de cooperação mais eficazes para problemas políticos comuns e como forma profícua de se entender a si mesmo.

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