Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães

Fatos e Fox: um empresário australiano é o fiador da presidência Trump

Acirramento da polarização nos EUA e emergência da mídia digital coincidiram com ascensão do canal a cabo

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Quem sabe se Donald Trump já está selecionando parceiros de golfe para o próximo fim de semana, quando pode celebrar sua absolvição no julgamento do impeachment no Senado.

O desfecho do terceiro julgamento para remover um presidente na história americana era previsível, desde o começo. A líder da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, passou metade de 2019 resistindo à pressão da ala progressista do partido para começar o processo de impeachment. 

Só quando foi revelada, em setembro, a denúncia de um "whistleblower" sobre a chantagem feita pela Casa Branca com a Ucrânia para liberar crucial ajuda militar em troca de sujeira sobre o pré-candidato Joe Biden e seu filho Hunter, é que Pelosi jogou a toalha e instalou a investigação perigosamente vizinha ao início das primárias presidenciais de 2020.

Mas a derrota certa no Senado controlado pelos republicanos não se deve ao profundo afeto dos colegas de partido por Trump. Como disse uma fonte à rede CBS, o recado aos senadores foi direto: “Vote contra o presidente e sua cabeça vai ficar na ponta de uma lança”.

Donald Trump em evento de campanha em Nova Jersey - Spencer Platt - 28.jan.20/Getty Images/AFP

É uma clara ameaça a 23 senadores republicanos que disputam a reeleição em novembro e, numa saraivada de tuítes presidenciais, podem ser flechados mortalmente com a preferência de Trump por um desafio à direita nas primárias.

Os geocêntricos senadores americanos gostam de se referir à sua Casa como “o maior corpo legislativo do mundo”.

Então, como conciliar a importância de uma cadeira no Senado com o acovardamento diante de ameaças mais comuns na boca de um lugar-tenente mafioso do bairro de Queens, onde Trump cresceu e herdou seus negócios imobiliários?

Como sabemos, o poder, seja do governo ou do crime organizado, depende de garantir penalidades se ordens não forem cumpridas. E aí entra a mais destrutiva máquina de propaganda da mídia contemporânea.

A Fox News domina a audiência da TV a cabo americana continuamente há quase 18 anos. É uma câmara de eco em que âncoras posando como jornalistas anunciaram que a certidão americana de nascimento do então presidente Barack Obama era “suspeita”, espalhando assim a teoria “birtherista” promovida pelo empresário nova-iorquino e futuro presidente Trump.

A Fox não inventou Donald Trump, mas, a partir dos anos 1990, cultivou o terreno que permitiria a ascensão do empresário.

Depois de herdar do pai um pequeno jornal regional australiano, na década de 1950, Rupert Murdoch começou a cultivar políticos como um capo mafioso e, em seguida, extorquir proteção.

Na Austrália, seus jornais fazem e desfazem a carreira de primeiros-ministros. No Reino Unido, Tony Blair foi beijar sua mão, em 1997, para romper o cerco do magnata ao Partido Trabalhista.

O brexit dificilmente teria passado, em 2016, sem apoio de Murdoch.

Mas é nos Estados Unidos, onde obteve cidadania para poder se tornar proprietário de canais de TV, em 1985, que o australiano adquiriu maior influência para minar a democracia.

O conservadorismo americano tinha expoentes intelectuais, mas Murdoch merece o crédito por ter entendido que havia um mercado não explorado, o do ressentimento racial anti-elites.

Quis a impiedosa ironia da história que o caminho da Fox tenha sido aberto por um dos icônicos personagens sórdidos do pós-guerra americano, mentor e figura paterna de Trump, o advogado Roy Cohn.

Cohn inspirou o personagem gay sofrendo de Aids (a doença que o matou, em 1986) vivido por Al Pacino, na série "Anjos na América", baseada na peça homônima de Tony Kushner.

Nos anos 1950, Cohn era o braço direito do infame senador Joseph McCarthy, responsável pela caçada a comunistas.

Quando McCarthy caiu em desgraça, Cohn se reinventou em Nova York e passou a defender clientes como Fred, o pai de Donald Trump, assim como notórios capi da elite da máfia nova-iorquina, das famílias Gambino e Genovese.

Foi Cohn quem apresentou Rupert Murdoch ao futuro presidente Ronald Reagan, nos anos 1970. Na década seguinte, Cohn voltou a aproximar os dois, e Murdoch se dispôs a promover, em suas publicações, temas queridos do conservador, como intervenção na América Central.

Reagan relaxou a lei federal do pós-guerra sobre equilíbrio e diversidade de pontos de vista na mídia, a Fairness Doctrine, um ato que facilitou o avanço da Fox Broadcasting Company, a rede aberta recém-fundada por Murdoch.

Rupert Murdoch, proprietário da rede Fox News
Rupert Murdoch, proprietário da rede Fox News - Mike Segar - 10.set.17/Reuters

Vale lembrar que o chamado jornalismo objetivo foi uma exceção e não uma norma na história da imprensa americana. Entre a Segunda Guerra e o final de década de 1980, o negócio do jornalismo, sustentado por anunciantes, dependia de atingir audiências maiores, portanto, não sectárias. 

O acirramento da polarização política nos EUA, sob o governo Clinton, e a emergência da mídia digital coincidiram com a ascensão da Fox News no cabo.

Mas a rede começou conservadora, não lunática. Hoje, a programação do horário nobre do canal, assistida por uma média de 2.5 milhões de espectadores, é um loop contínuo de propaganda, conspirações e desinformação. Medo e raiva são o modelo editorial. 

O âncora mais visto é Sean Hannity, que conversa toda noite com Trump quando sai do ar. Ele é apelidado de chefe de gabinete nas sombras.

Hannity despreza qualquer aparência de independência e subiu ao palanque de um comício com Trump, antes das eleições intermediárias de 2018.

 

Notório por trabalhar poucas horas por dia, Trump passa boa parte de seu “horário executivo” (eufemismo para ócio na agenda oficial) grudado na tela e tuitando o que vê no ar.

Na terça-feira (28), pediu no Twitter a cabeça do veterano âncora Chris Wallace, uma exceção independente no culto trumpista da Fox.

Rupert Murdoch está para completar 89 anos, e a gestão diária da Fox cabe a seu filho Lachlan, segundo uma reportagem do New York Times de 2019, ainda mais nacionalista e extremista do que o pai.

Donald Trump tem se queixando a amigos que não sente a mesma lealdade cega na rede.

Talvez não tenha percebido que, para a Fox, ele é um modelo lucrativo de negócio. Até o momento em que deixar de ser.

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