Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

O beijo alopata na Bela Adormecida num coma complexo

O raciocínio e o passo a passo de um neurologista que investigava um caso complicado

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A senhora S. acordou confusa e desajeitada naquele dia. Era fato que já estava atrapalhada há alguns dias, mas havia piorado. Caiu em convulsão diante de seus filhos e foi levada ao pronto-socorro. Os espasmos só cessaram após sucessivas administrações de medicamentos anticonvulsivantes. A mulher foi sedada e passou a respirar com suporte de aparelhos. 

Os médicos prescreveram antibióticos para tratar uma possível infecção cerebral, mais tarde descartada, e providenciaram a transferência para a UTI.

Um médico neurologista suspendeu a sedação e foi avaliá-la. Abordou-a pelo nome, tocou vigorosamente em seu tórax e moveu a cabeça dela em todas as direções enquanto observava seus olhos. A seguir, apertou a clavícula e iluminou as pupilas da doente, sempre atento às reações. 

 
Bailarinos russos na produção de "A Bela Adormecida", em Moscou
Bailarinos russos na produção de "A Bela Adormecida", em Moscou - AFP

A senhora S. dormia o sono da Bela Adormecida, em coma. Todas as ações do neurologista objetivaram estimular sensores corpóreos da senhora S. Os olhos são sensores de luz; ouvidos, de sons; estruturas cutâneas, de dor, tato e pressão; articulações e labirinto, de movimentos. As percepções são transmitidas por meio de nervos para o encéfalo e/ou para a medula. Esses centros processam as informações e organizam a resposta, que será transmitida também pelo nervo ao corpo.

O que o neurologista fez foi testar a integridade de algumas vias neurais evolvidas em percepção, modulação e reação. Por conhecer essas vias elétricas, seria capaz de dizer quais delas estariam ou não interrompidas e correlacionaria com a causa do coma. A senhora S. mantinha seus reflexos normais, o que sugeria que a anatomia de todos esses caminhos elétricos estava intacta.

As estruturas centrais que cuidam dos reflexos testados pelo neurologista têm também a função de ativar as regiões corticais cerebrais, que são a erupção da consciência. O clínico teorizou que a consciência de S. não emergia porque algo estava muito errado na ponta final do acionamento do córtex cerebral —como um carro que não funciona porque a combustão da gasolina não é aproveitada pelos pistões do motor.

O neurologista pensou que os hemisférios cerebrais poderiam estar silenciosos pela ação de um medicamento que impediria o funcionamento do córtex cerebral. Os resultados de exames acordaram para sua hipótese, já que fora detectada uma elevadíssima concentração de anticonvulsivantes no sangue, ao passo que a ressonância de encéfalo era normal, tal qual a primeira análise de liquor (fluído que banha o cérebro e a medula e é detentor de eventuais “impressões digitais” de infecções e inflamações).

A senhora S. acordaria em breve, suporiam os que estavam por perto. Sessões de hemodiálise livrariam o sangue dos excessos. Mas, após a depuração, nada havia mudado. O neurologista engoliu a frustração. Foi aos estudos e reviu exames. Uma outra análise do liquor apontou excesso de anticorpos intracranianos. O médico teorizou que a senhora S. pudesse sofrer de uma doença autoimune, ao passo que algum anticorpo, ou melhor, autoanticorpo, bloqueara a ativação cerebral da paciente.

Sem conseguir definir o nome do anticorpo, mas com a crença firme de que solucionara o caso, o clínico iniciou a terapia. Por cinco dias prescreveu altas doses de corticosteroides, que reduzem ação dessas proteínas. Mas não houve sucesso. Com sorriso amarelo, prescreveu outros anticorpos —tecnicamente, imunoglobulina, uma prática sacramentada para tratar várias doenças imunológicas, pois se sabe que anticorpos injetados neutralizam anticorpos indesejáveis. Outro fracasso.

Por fim, o médico pensou em retirar anticorpos da mulher e prescreveu plasmaférese. A terapia consiste em passar todo o sangue em um filtro que joga fora essas proteínas. Depois de sete sessões (usualmente são cinco), a senhora S. abriu os olhos. Foi o beijo alopata na Bela Adormecida. Dias depois, a senhora S. deixou o hospital caminhando. Nosso cientista acreditou que os anticorpos malvados foram purgados, e o cérebro acordou. 

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