Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A história que se repete até mesmo no combate às doenças raras

Estado de mal epiléptico passou por menções religiosas, descaso e erros de tratamento até ser cuidado adequadamente

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Luís tem esclerose múltipla, uma doença que ataca em surtos, quando surgem inflamações em regiões cerebrais, da medula espinhal ou dos nervos da visão. Um surto pode causar um sintoma ou combinações de vários, como dificuldade em se mover, tontura, formigamentos, visão turva ou dupla. Os surtos são abrandados pela remissão. Um processo biológico de restabelecimento e desinflamação.

Em meio ao cabo de guerra entre surtos e remissões, Luís vivia sem incapacidades. Temia, é claro, o próximo surto, que talvez viesse a lhe retirar algo permanentemente. Entretanto, suas mais pessimistas imaginações não previram o que viria. Em uma manhã, o jovem homem arregalou os olhos enquanto movia seus músculos da face de um jeito inimitável. Estava inconsciente, e de pálpebras abertas, nada enxrgava. Assim foi levado ao hospital.

Em um setor de urgências médicas, Luís recebeu o diagnóstico: estado de mal epiléptico. Trata-se de uma crise epiléptica prolongada, ou de várias que se sucedem continuamente.

A evolução do enfrentamento ao estado de mal epiléptico, segue um roteiro frequente na história da humanidade. Logo, não é surpreendente encontrar menções religiosas na mais antiga referência a um ataque epiléptico prolongado, em um texto babilônico, de pouco mais de 2.700 anos. Há citações sobre o “demônio possuidor”, que ao “possuir muitas vezes”, no “momento da possessão” se a vítima “permanecer abrindo e fechando a boca, por algum tempo”, ela irá morrer.

Por não ser uma prioridade humana, o problema das crises epilépticas contínuas foi desprezado, raramente mencionado em documentos da antiguidade.

Enfermeira segura mão de paciente
Enfermeira segura mão de paciente - Pascal Rossignol/Reuters

O termo estado de mal foi escrito pela primeira vez em 1824, em uma dissertação de doutorado em Paris, em alusões ao que acontecia com vários pacientes em sanatórios. O texto apontava que pessoas doentes internadas utilizavam o advérbio mal para descrever as incessantes convulsões de outros pacientes que terminavam por falecer.

Assim a condição não era mais negligenciada, devendo ser combatida. Porém, não é infrequente o homem criar soluções inócuas ou agravadoras da situação. E assim foi. Os tratamentos propostos no início do século passado propunham purgações intestinais, pois se acreditava ser o estado de mal causado por hábitos alimentares ou obstipações.

Felizmente, já existiam alguns sépticos críticos. Estes metódicos alicerçaram evoluções terapêuticas, que, futuramente, seriam empregadas para salvar, ou tentar salvar Luís. Contudo, os protocolos iniciais não cessaram as convulsões dele.

Luís passou a receber o sedativo mais potente e foi entubado. Eletrodos foram colados em seu couro cabeludo para que as atividades dos neurônios fossem lidas. Embebido em tal droga, o paciente repousava na mais abissal forma de coma medicamentosa.

Antiepilépticos, desses comprados em farmácias, também estavam no arsenal farmacológico utilizado. Não havia sucesso, todas as tentativas de se suspender o sedativo, eram interrompidas por mais convulsões. Os médicos substituíram as combinações de medicamentos, e o potente sedativo era restituído.

Dois meses se passaram sem o mínimo progresso. Enquanto a equipe médica elucubrava sobre tratamentos, uma das visitas de Luís, rotineiramente, tentava curá-lo com imposição de mãos. Os médicos e a visita empatavam no insucesso. Nós humanos, às vezes, nos apegamos a mistérios errados.

É extremamente raro esclerose múltipla provocar crises epilépticas, mais raros ainda são os ataques intratáveis e intermináveis, como os que Luís encarava. No entanto, a esclerose múltipla foi responsabilizada pelo estado de mal do rapaz, após extensa investigação laboratorial.

O tratamento contra as inflamações foi modificado, intensificado. Em paralelo os médicos contrariaram bulas de remédios e livros de medicina, ao prescreveram em dose altíssima um específico anticonvulsivante. Os textos ignorados explicavam que tal droga deveria ser utilizada ao paciente, inicialmente, em dose pequena, em semanas, gradualmente aumentada. A situação crítica favorecia a heterodoxia.

Para muitos problemas, a solução ainda não foi descrita. Deu certo, Luís se recuperou.

Referências:

1--Neligan A, Shorvon S The history of status epilepticus and its treatment. Epilepsia, 50(Suppl. 3):56–68, 2009 doi: 10.1111/j.1528-1167.2009.02040.x

2- Calabrese M, Castellaro M Epilepsy in multiple sclerosis: The role of temporal lobe damage. Multiple Sclerosis Journal 2017, Vol. 23(3) 473– 482 DOI: 10.1177/1352458516651502.

3 - Spatt J, Goldenberg G, Mamoli B. Epilepsia partialis continua in multiple sclerosis. Lancet 1995;345:658–9.

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