Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A cognição da ideologia sobre a cloroquina

Na pandemia, droga acabou associada a posicionamento ideológico

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Virou caso de um grande hospital brasileiro —talvez verídico: um paciente estava indignado por não ter recebido prescrição de cloroquina e outras medicações, o tal tratamento precoce contra a sua recém-diagnosticada condição, a Covid-19. Reclamava e requisitava novo atendimento, mas exigia para a próxima vez, um médico de direita, para lhe prescrever o que ele julgava ser adequado.

Concluo o óbvio: para esse homem é a direita ou a esquerda que movem o tratamento contra o coronavírus. Sob essa ótica, a primeira preconiza a terapêutica eficaz e a segunda a errada. É o absurdo, o pressuposto da existência de duas forças ideológicas opostas, ambas independentes aos fatos, uma que ilumina as melhores práticas clínicas e outra que atrapalha. O paciente dispensa a verdade baseada em provas.

Ora, existem informações abundantes de boa qualidade técnica, disponibilizadas gratuitamente, que liquidam as fracas e anteriores evidências da eficácia dos fármacos que compõem a “terapia precoce contra o Sars-CoV-2”. São essas as informações que suportam as diretrizes clínicas decentes de combate ao coronavírus, tanto em países socialistas como em capitalistas.

Ueslei Marcelino
Embalagem de cloroquina - Ueslei Marcelino/Reuters

Mas, no Brasil, o tema foi cooptado por lideranças que incitam seguidores sob o jugo de um manto raso ideológico. Incitados, os apoiadores se convencem mais, associam-se mais ao conteúdo ideológico e demonstram disposição para receberem o tratamento ineficiente.

Ideologias formatam teorias coerentes que auxiliam as pessoas a compreender melhor o mundo caótico e a pertencer a grupos. No entanto, frequentemente ideologias angariam devotos que deixam de refletir sobre outras formas de pensar, pois caso contrário, arriscar-se-iam a ver seus argumentos ruírem, por conseguinte, seus ideais.

Esses compêndios de teorias fixas podem fomentar preconceito, perseguição às classes, nacionalismo exacerbado. Com esse pano de fundo, muitas atrocidades foram cometidas em nome de ideologias. Essas experiências não impedem que teorias violentas continuem a seduzir populações, mas há uma razão para isso e está atrelada à cognição.

O comportamento do cliente hospitalar dá uma pista sobre a arquitetura mental dos seguidores de ideologias, pois destaca a defesa de uma ideia imutável, enquanto ele dava as costas para bons argumentos. Em termos técnicos, o paciente demonstrava carência de uma habilidade psíquica, a flexibilidade.

A psicóloga do comportamento Leor Zmigrod da Universidade de Cambridge, que estuda cognição e ideologias, aponta que essa insuficiência é um traço comum em defensores de ideias prontas, incluindo os radicais de esquerda.

Porém, ela tem mais a dizer, especialmente depois de concluir uma pesquisa que comparava a performance cognitiva de adeptos à ideologia versus os não adeptos. Dessa forma, revelou que características cognitivas são mais decisivas para adesão às explicações ideológicas do que as variáveis sociais e ​​demográficas. Constatação que desafia a perspectiva de que os indicadores socioeconômicos são os determinantes mais poderosos de crenças.

A pesquisadora desvendou características cognitivas de adeptos de formas rígidas de pensar. Conservadorismo e nacionalismo foram relacionados à hesitação para tomar decisões e à lentidão para a escolha de estratégia adequada. O dogmatismo foi associado à capacidade reduzida de memorizar evidências e à impulsividade. As crenças ideológicas refletem, portanto, específicas deficiências cognitivas e não necessidade pessoais. Surgem por meio de processos mentais independentes de emoções. Logo, sempre existirão pessoas dispostas a seguir um populista cuspidor de lugares comuns, em qualquer lugar do mundo.

Felizmente, há os que não se submetem ao dogmatismo, esses sabem que têm potencial em falhar, por isso revisam suas atitudes e seus conceitos à luz de novos acontecimentos ou dados. Eles admitem as ambiguidades e contemplam a complexidade das circunstâncias, exemplificando a flexibilidade cognitiva e a inteligência.

Referências:

Zmigrod, L. Précis of “The Cognitive Underpinnings of Ideological Thinking.” .

Zmigrod, L.; Eisenberg, I.; Bissett, P.; Robbins, T. W.; Poldrack, R. A Data-Driven Analysis of the Cognitive and Perceptual Attributes of Ideological Attitudes. PsyArXiv April 14, 2020. https://doi.org/10.31234/osf.io/dgaxr

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