Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Zumbidos, na maior parte das vezes, são causados por modificações da atividade cerebral

Mas algumas vezes a origem pode ser algum barulho real, do próprio corpo

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Maria dorme abrigada por paredes delgadas, ineficazes em bloquear os sons da vizinhança. Toda noite, de mau grado, monitora os passos, tosses, sobras de conversas e toda sorte de ruídos constrangedores, sinais sonoros de sua cercania. No seu ritual noturno, revira-se na cama, com a esperança ingênua de encontrar uma posição confortável e algum silêncio.

Thereza tem problemas semelhantes. Porém carrega o fardo consigo, o tempo inteiro, em qualquer lugar, e sempre pior a noite. Ela escuta um zumbido em seu ouvido esquerdo, incessável, há anos.

Para a medicina, zumbido é a audição de um som que não tem uma fonte externa, é uma cria do corpo. Em sua vasta maioria, são causados por modificações da atividade cerebral, iniciadas após alguma perda auditiva. Essas mudanças são seletivas, acometem áreas cerebrais relacionadas à audição e à atenção. Entretanto, raramente, o zumbido pode ser fruto de algum barulho real, por exemplo, quando causado por tremeliques contínuos de músculos que deveriam estabilizar o tímpano.

Pessoa na bolsa de Nova York coloca a mão no ouvido
Negociador na bolsa de valores de Nova York coloca a mão no ouvido - Bryan R. Smith/AFP

Pesquisas realizadas em diferentes países apontam que 10% a 25% dos adultos sofrem por esse problema. Porém, apenas um pequeno número dos afetados se incomoda profundamente com o distúrbio. É o caso de Thereza: "o chiado prejudica minha concentração no trabalho e em conversas. Mas até aturaria isso, se o barulho me desse folga na hora de dormir", como ela dizia frequentemente.

As características do som perturbador, como frequência e amplitude, não são determinantes para causa de tanto aborrecimento, mas ao funcionamento cerebral. Estudos recentes apontam que centros encefálicos envolvidos em controle de atenção e emoções trabalham exageradamente naqueles que se incomodam tanto. Thereza era toda focada em seu sintoma e tinha asco. Submergia no problema.

Para seu desespero, quase todos zumbidos não têm cura. E não foi por falta de tentativa, muitos remédios foram utilizados em vários experimentos, mas os resultados foram frustrantes.

Por azar, demorou muito até ela conseguir esclarecer que havia algo de atípico em seus sintomas, um dado extremamente relevante, despercebido em consultas, porém um indício de ser candidata à cura.

Thereza escutava um murmúrio pulsátil, coincidente com seus batimentos cardíacos. Provavelmente ela ouvia um problema circulatório. Explico: não há som produzido pelo movimento sanguíneo normal em nossos vasos circulatórios. Entretanto, quando há alguma obstrução, o correr do sangue acontece em turbilhonamento, um fenômeno audível.

Com essa grande suspeita o médico apertou levemente o pescoço dela. Tal ação fez o zumbido desaparecer momentaneamente. A manobra interrompeu o fluxo sanguíneo pelas veias jugulares, parte do sistema circulatório corporal encarregado em receber todo o sangue que passou pelo cérebro. O bloqueio também impediu a circulação ruidosa em algum local intracraniano. Sem movimento, sem o barulho. Exames de ressonância apontaram a estrutura venosa culpada: um pequeno vaso próximo ao ouvido esquerdo estava estreito. Foi encontrada a causa do turbilhonamento sanguíneo, a fonte do zumbido de Thereza.

A solução foi muito tecnológica. Locar um tubinho dentro do ducto venoso estrangulado. A execução tinha lá seus riscos, mas Thereza aceitou o desafio. Não tinha a opção de mudar de corpo como Maria teria de mudar de casa. Agora passa bem, não pensa mais no ritmo do zumbido.

Referências:
1. Shahsavarani S, Schmidt SA, Khan RA, Tai Y, Husain FT. Salience, emotion, and attention: The neural networks underlying tinnitus distress revealed using music and rest. Brain Res. 2021 Mar 15;1755:147277.
2. Bauer CA. Tinnitus. N Engl J Med. 2018 Mar 29;378(13):1224–31.
3. Kandeepan S, Maudoux A, Ribeiro de Paula D, Zheng JY, Cabay JE, Gómez F, et al. Tinnitus distress: a paradoxical attention to the sound? J Neurol. 2019 Sep;266(9):2197–207.
4. Cortese J, Eliezer M, Guédon A, Houdart E. Pulsatile Tinnitus Due to Stenosis of the Marginal Sinus: Diagnosis and Endovascular Treatment. Am J Neuroradiol. 2021 Dec 1;42(12):2194–8.

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