Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Setecentos anos

Obsessão pela originalidade é uma forma de pobreza de espírito da vida moderna

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Uma das maiores formas de ignorância é a ideia de que os ancestrais e os idosos não servem para nada. A boçalidade ganhou ares de suposta sabedoria em meio a um mundo que se degrada, até mesmo pelas mãos daqueles que se dizem defensores de uma atitude progressista. 

Vou contar uma pequena história que pode nos ajudar a sair dessa ignorância. Certa vez, uma mulher brasileira apaixonada por jardins, viajando pelo interior da Inglaterra, passou de carro por uma pequena cidade do interior e estacionou diante de um belíssimo jardim. Encantada com o que viu, e querendo saber o modo como a dona daquela casa teria sido capaz de criar tamanha beleza em seu jardim, parou o carro e correu até a casa, batendo à porta com o coração em saltos.

Ilustração com fundo amarelo de homem velho barbudo com túnica, iluminando vários objetos tipo livros, que estão regando outros livros, duas mão conectadas por uma algema, uma está segurando um galho que parece feito de chips de computador e a outra está presa pela algema
Ricardo Cammarota/Folhapress

Uma pequena senhora abriu a porta sorridente. Nossa brasileira falava inglês perfeitamente. Ela tinha muitas perguntas para aquela pequena senhora, mas a primeira resposta já impactou nossa conterrânea cultivadora de jardins no Jardim Europa.

“Há quanto tempo a senhora cultiva esse jardim para que ele seja tão belo?” Nossa pequena senhora respondeu, de modo direto e simples: “Setecentos anos”.

Qual a moral dessa história? A vida de uma pessoa, de uma sociedade, de uma cultura, é como um jardim. Setecentos anos são necessários para você ver e cultivar a beleza, que aqui não representa apenas a beleza puramente estética, mas, acima de tudo, a harmonia das formas, construída pelo silêncio de quem dedica o cotidiano à beleza e à moral que tornam a vida algo de valor.

A verdade é que a beleza e a harmonia na vida (uma vida moral) nunca têm nada de original, ao contrário do que pensam os idiotas, que são fruto de rupturas trazidas por recém-nascidos ou adolescentes raivosos. 

A beleza, assim como a vida moral, nunca teve nada de original. A obsessão pela originalidade é uma forma de pobreza de espírito típica da vida moderna. Mede-se a estupidez de uma cultura pela desvalorização do conhecimento dos idosos, dos ancestrais e dos mortos. 

Uma das razões da bestialidade que assola nosso mundo é a crença infantil de que devemos dar todo o poder aos que acabaram de chegar ao mundo. 

Mesmo que o capitalismo, na sua fúria pelo fetiche da inovação, nos enfie essa falácia goela abaixo, o futuro depende muito mais dos mais velhos do que dos mais jovens. 

Eis a máxima que desaparece sob a poeira da boçalidade de muitos dos defensores de uma vida cheia de inovações: o futuro depende dos mais velhos e não dos mais jovens.

Isso em nada significa a adesão cega a formas de preconceitos ou superstições como pensam os inteligeninhos. Esse tipo de capacidade e percepção tem mais a ver com a habilidade de quem treinou tanto piano ao longo da vida que, ao ouvir as primeiras notas do “Noturno” de Chopin, é capaz de continuar a tocar a música sem ler nenhuma partitura. A vida é uma arte prática e não teórica.

A vida é como uma sinfonia na qual entramos depois que muitos já a tocaram e nos ensinaram a tocar com seus gestos delicados e discretos. A discrição é uma virtude dos que sabem ouvir e não dos que gritam por aí suas pequenas crenças em hashtags. 

A burguesia, como classe social histórica, é presa natural dessa forma de estupidez: acreditar no novo como resposta é sempre uma forma gourmet de ignorância. É confundir uma nova geração de iPhones com o modo como se educa os mais jovens ou se conduz o cotidiano

A ignorância da burguesia caminha passo a passo com o seu sucesso estrondoso. Toda forma de prosperidade carrega em si um risco de estupidez.

Os mais velhos, em meio a sua dor, seus fracassos, suas doenças e seus medos, sabem muito mais sobre a vida do que jovens barulhentos que confundem tecnologia com conhecimento. E a educação, na medida em que se faz workshops de algoritmos, anuncia a cegueira que caracteriza o mundo moderno acerca de si mesmo.

Quem ainda não entendeu que o futuro é dos mais velhos, não entendeu que “a sociedade é uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram”, como diria Edmundo Burke.

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