Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Só sendo irrelevante você escapa da censura líquida de hoje

Estado de Direito e mercado são parceiros no caráter líquido da nova forma de reprimir o pensamento público

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Tomo emprestado do sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017) o termo "líquido" para descrever como funciona a censura hoje e nas próximas décadas deste século 21 nas democracias. Uma das características da censura líquida é ser, justamente, "democrática", isto é, operar dentro do Estado de Direito e suas instituições. Aliás, o Estado de Direito e mercado são parceiros diretos no caráter líquido da nova forma de censura no século 21.

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada manualmente, estilizada, em técnica caneta hidrocor cor preta, espessura bem fina, com acabamento em traços tremidos e, ao fundo, pinceladas soltas com nanquim aguado sobre papel.  A imagem mostra a clássica figura de Hamlet - William Shakespeare - olhando para uma cabeça de caveira, que segura em uma das mãos, frente a frente. Tanto o homem como a caveira tem no lugar dos olhos câmeras de vigilância.
Ricardo Cammarota

Para Bauman, "líquido" significa que em nossa época, a sociedade e suas instituições "escorrem pelos dedos". Tudo se espalha sem forma clara. Tudo é impermanente. Sua entrevista publicada em livro com o título "Vigilância Líquida" traz o sentido do conceito ainda mais próximo para o uso que faço dele aqui aplicando-o a censura.

Ali Bauman diz que o big brother de George Orwell (1903-1950) se revelou como um sistema líquido de vigilância em que todos vigiam todos o tempo todo, sem um centro institucional claro, ou seja, o big brother é a internet e as redes sociais. Nós mesmos facilitamos essa vigilância em busca de rapidez na aquisição de produtos, serviços e segurança nesses processos.

Há uma outra imagem na filosofia que é muito útil para descrever essa censura líquida, imagem essa que já fora utilizada pelo filósofo Blaise Pascal (1623-1662) para se referir ao universo infinito, indiferente e escuro de Newton. Vou aplicar essa imagem ao modo de como já funciona a nova censura líquida neste século.

A censura líquida é como "um círculo cuja circunferência está em toda parte, o centro em parte alguma". A interdição ou a punição parece brotar de todo lugar e ao mesmo tempo de lugar nenhum que possa ser delimitado.

Qualquer um ou qualquer instituição poderá denunciar qualquer frase, texto, vídeo, que julgar inadequado. O poder judiciário poderá acatar a denúncia na direta proporção de que seu agente concorde com a denúncia, e você, cidadão comum, sem poder institucional algum, dependerá do que pensa, absoluto, o juiz que decidirá se você ainda terá vida profissional, econômica, pública ou mesmo familiar. E você ainda pagará pela sua condenação, como era na inquisição.

Mas, a censura líquida não só opera a partir do Estado, ainda que este, na sua versão contemporânea, tenda a ser cada vez mais repressivo, graças as tecnologias digitais ao alcance do poder judiciário. O mercado e as empresas também têm um papel essencial no mecanismo repressivo do pensamento público hoje.

Cancelamentos implicam suspensão de patrocínio e demissões. Ainda que a maioria das pessoas não perceba, esse processo é típico da censura líquida. Patrocinadores e empregadores tem todo o direito de suspender o vínculo com alguém que possa carregar negativamente suas marcas.

Assim sendo, o branding – a princípio uma atividade puramente do marketing e da publicidade – passa a ser um dos braços mais poderosos da censura no século 21.

Uma marca da censura líquida é que ela pode destruir a sua vida sem prender você ou necessariamente "proibir" você diretamente de falar ou escrever, mas sim de pensar. A pura ameaça já tem o efeito do censor. Aquilo que nos regimes totalitários ocorria numa escala menor, mais lenta e localizável facilmente, no século 21 acontece em escala geométrica, tecnológica, acelerada cada vez mais, e difusa. Pode vir de qualquer lado, a qualquer momento. Vivemos na era do "assédio jurídico".

Assim sendo, a democracia contemporânea liberal de mercado pode operar completamente dentro do Estado de Direito, da lei e da liberdade de empreendimento, sem necessidade de um "estado de exceção", e ainda assim marchar em direção a processos autoritários já em curso de instalação.

Apesar de que exista hoje uma competição acirrada entre o Estado e as plataformas pela soberania – a PL das fake News deve ser vista nesse nível mais profundo –, indicando um real desafio a ideia do estado moderno como soberano, no que tange a censura, Estado e mercado podem ser aliados perigosos a acuar o pensamento público. Como escapar? Fácil: seja irrelevante em tudo e para sempre.

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