Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

O que a filosofia busca que a ciência não enxerga?

A prática científica segue cega em meio aos determinantes da sociedade, da cultura e da espiritualidade

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Por que alguém deixaria de ser médico para ser filósofo? O fato é que fiz isso, de certa forma, na minha vida —do quinto ano de medicina à faculdade de filosofia, com algumas idas e vindas pela formação em psicanálise e pelo teatro. A trajetória do psiquiatra alemão Karl Jaspers (1883-1969) é um exemplo claro desse processo.

Formado em medicina na universidade de Bremen, com doutorado em Heidelberg, acabou por se afastar da medicina para se tornar professor de filosofia da mesma universidade. Em 1937, com o nazismo, teve que fugir e se tornou professor na universidade da Basiléia, na Suíça.

Título: Da medicina à filosofia. A ilustração em preto e branco, figurativa, de Ricardo Cammarota foi executada digitalmente, em técnica vetorial. A imagem, na proporção 19,5cm x 9,5cm, na horizontal, apresenta, da esquerda para a direita, os símbolos: da filosofia (representado pela letra “ Fi ”do alfabeto grego - estilizado (parece a letra I maiúscula sobre a letra O), o da medicina (representado pelos ícones de uma cobra sobre um bastão) e o terceiro, uma solução gráfica que é mistura desses dois símbolos.
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé de 11 de junho de 2023 - Ricardo Cammarota

O que se passa entre o Jaspers, autor do clássico "Psicopatologia Geral" de 1913 —que todos estudamos na faculdade de medicina nos anos 1980— e o Jaspers da sua obra magna "Filosofia", de 1931?

Segundo o que diz o próprio autor no seu posfácio à edição de 1955 da sua "Filosofia", "à medida em que tomamos consciência, metodologicamente, dos limites da ciência, fazemos, uma vez mais, a velha experiência: o conhecimento científico é incapaz de dar uma condução à vida, ele não consegue dar a si mesmo seu próprio sentido, sua razão de ser. Do ponto de vista da filosofia, ele aparece como dispersão".

No segundo ano da faculdade de medicina, discutindo um caso de um paciente terminal numa aula de imunologia, perguntei ao professor como este paciente se via diante do fato que ele ia em direção ao nada.

O professor respondeu de bate pronto: "O senhor está na aula errada, essa pergunta é para uma aula de filosofia". Ele tinha razão, mas levei alguns anos para descobrir isso.

Hoje, diante de uma resposta dessa, provavelmente minha mãe, minha psicóloga ou o advogado da minha mãe iriam atrás do professor para arruiná-lo. Mas, os anos 1980 eram infinitamente mais livres do que os anos atuais.

Hoje, vivemos em tempos sombrios sob palmas dos idiotas. Minha pergunta ia na direção do que disse Jaspers na citação acima. A "dispersão" à qual ele faz referência descreve a incapacidade metodológica da ciência, no seu dia a dia prático, de compreender a sua conduta no mundo —para além dos progressos tecnológicos.

A prática científica segue cega em meio aos determinantes da sociedade, da cultura, da espiritualidade, dos jogos políticos que a atravessam, enfim, de tudo aquilo que vai além da consciência puramente técnica da ciência.

A "dispersão" da qual fala Jaspers significa essa forma de cegueira que só pode ser reconhecida por disciplinas como a filosofia, que, como "não servem para nada", como dizia o filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), é absolutamente livre para dizer tudo aquilo que as outras disciplinas não ousariam imaginar, nem, muito menos, enunciar publicamente.

Mas a passagem da medicina à filosofia em Jaspers vai além da constatação da cegueira da ciência acerca da sua submissão ao esfarelamento no mundo real —ou seja, não é apenas uma querela metodológica.

Jaspers suspeita que falte à ciência a capacidade de acessar a ânsia humana pelo transcendente, ou seja, por algo que escape à dispersão da qual ele fala, e coloque a consciência humana em "seu habitat natural", a saber, a linguagem espiritual.

A filosofia fala a linguagem da religião e da sua busca pelo absoluto, sem perder o uso da razão. Esta peculiaridade, para Jaspers, faz da filosofia a disciplina por excelência da espiritualidade.

Em 1964, o autor publica seu "Os Mestres da Humanidade: Sócrates, Buda, Confúcio, Jesus", obra madura em que Jaspers analisa esses quatro grandes sábios, mostrando que os quatro, ainda que de formas diferentes, praticam a espiritualidade em diferentes cenários culturais.

Esta obra será a grande inspiração para a historiadora britânica Karen Armstrong escrever sua "A Grande Transformação" de 2006 —na minha opinião, seu melhor livro.

Para Jaspers, uma filosofia espiritual busca olhar a totalidade das experiências humanas a partir da pergunta essencial pelo sentido de estarmos vivos e, logo, mortos, por isso, sua obra integra
a grande tradição das filosofias da existência.

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