Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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Manuela Cantuária
Descrição de chapéu

A cena do crime

Sinto minha menstruação descer, e isso explica muita coisa

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Cheguei chorando no trabalho porque um homem-placa me ignorou. Não queria o panfleto dele, mas e daí? No elevador, sinto minha menstruação descer. Isso explica muita coisa.

Passo na sala onde a Joyce trabalha —a única amiga que fiz ao longo desses três meses de experiência— em busca de um absorvente. Ela olha para os lados e o entrega disfarçando com um cumprimento de mão, como se estivesse traficando drogas.

Trabalho um pouco, pego um café. Na volta para minha mesa, uma cena de terror. A mancha de sangue no estofado da minha cadeira. Provavelmente minha calça também está manchada. Olho em volta, talvez ninguém tenha reparado. Ainda. Sento em cima da mancha.

Ilustração de Silvis para Manuela Cantuária de 30.jul.2019.
SIlvis/Folhapress

Mando uma mensagem para Joyce. Ela leva seis minutos digitando. A resposta, no final das contas, chega sucinta e em caixa alta: “SIMULA UM DESMAIO”. É o conselho padrão da Joyce para situações-limite. Meu plano é mais simples. Vou ficar aqui. Sentada. 

Até todo mundo ir embora. Então limpo a cena do crime.

O plano perfeito começa a ruir quando meu chefe diz que quer falar comigo na sala dele. Digo que estou ocupada. Meia hora depois, ele passa pela minha mesa de novo. Pergunto se não podemos resolver o assunto por email enquanto evito contato visual com ele. O resultado é uma torta de climão de sete andares.

Por que estou disposta a perder meu novo emprego em vez de simplesmente contar o que aconteceu? Como um óvulo não fecundado e um pouquinho de tecido uterino podem causar tanta vergonha?

Fecho os olhos, tento meditar, acessar um sentimento de gratidão por estar menstruada, saudável e, principalmente, não grávida. A gratidão é atropelada por uma gritaria lá fora. É um assalto à mão armada.

Aos poucos, todo mundo se levanta para ver da janela o espetáculo da violência urbana. Todo mundo, menos eu.

Meus colegas de trabalho narram o que estou perdendo. O homem-placa tenta dar uma de herói e toma uma coronhada. Tento disfarçar meu desinteresse mórbido: “Ah, gente, Copacabana. Isso acontece o tempo todo”.

Eles devem me achar um nojo de pessoa. Se soubessem a verdade, ficariam ainda mais enojados. Por quê? 

Sangrar pela vagina é natural. Mesmo assim, suspeito que a mancha de sangue na cadeira causaria mais horror do que a mancha de sangue no asfalto.

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