De onde vem o silêncio

A maioria das mulheres que conheço admite já ter sofrido algum tipo de abuso sexual ou conhecer outras mulheres que passaram por isso. A maioria dos homens que conheço não admite já ter cometido qualquer tipo de abuso sexual nem conhecer outros homens que o fizeram. Se a maior parte dos homens se apresenta como uma exceção, quem sobra para ser a regra? A conta não fecha.

"Não é possível." Quando uma mulher denuncia um homem por assédio sexual, geralmente é essa a primeira reação de seu entorno. "Essa história está muito estranha." Afinal, o acusado é pai de família, respeitado na profissão, um homem comum. Sim, porque essa é a regra.

E essa regra, mais uma vez, se confirma com o caso da francesa Gisèle Pelicot, de 72 anos, vítima de um abuso sexual sistemático por seu próprio marido. O eletricista aposentado Dominique Pelicot, com quem Gisèle tem três filhos e sete netos, sedava a esposa para mantê-la inconsciente enquanto ela era estuprada por outros homens em sua própria cama.

O marido de Gisèle recrutava os participantes em um fórum online chamado "Without Her Knowing" –em português, algo como "sem que ela saiba". O caso veio à tona quando Dominique foi preso por filmar por debaixo da saia de mulheres sem o consentimento delas e ter seu computador apreendido. Foi assim que os crimes praticados contra Gisèle, ao longo de dez anos, finalmente chegaram ao conhecimento dela. O julgamento de Dominique e de outros 51 homens envolvidos no caso chocou a França e o mundo.

E esse choque não se dá pelo fato de Dominique ser um monstro, uma exceção, um caso isolado, mas sim pelo fato de ele ser um homem comum. Assim como os 51 estupradores, que, em sua maioria, não tinham antecedentes criminais. Guardas prisionais, motoristas de caminhão, servidores públicos, jornalistas, médicos, bombeiros. Como afirmar, nesse contexto, que tantos homens são casos isolados?

Segundo Gisèle, até então, o casamento com Dominique tinha sido geralmente feliz. Em seu testemunho, a filha de Dominique disse: "Amava meu pai. (...) Descobri que o homem que era meu pai, em que eu tinha total confiança, que achava que era íntegro, que respeitava sua filha, que estava orgulhoso dela e que sempre a havia incentivado, na verdade havia me fotografado nua sem eu saber".

Mais do que uma história estranha, essa é uma história familiar.

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