João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu Portugal

O turismo horroriza os pedantes, mas é o único petróleo por estas bandas

Desprezar os 'turistas' é desprezar a ousadia dos pobres, ou dos antigos pobres

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1.

Alguém dizia que o problema da juventude era ser desperdiçada nos jovens. Palavras sábias.

Na minha juventude, o verão era um castigo. Sol? Praia? Relembro os versos da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner: "Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto ao mar". Com meus 20 anos, costumava citar esses versos, sim, trocando a palavra "mar" por "bar".

Era bicho de outono, entenda, e esperava pelo cair das folhas, pelas primeiras chuvas, pelas noites longas e frias como quem espera pela salvação. Setembro era a promessa das coisas que ficaram por fazer, como naquele filme de Woody Allen que tem o nome do mês no título.

Mas então vem a meia-idade, quando é legítimo presumir que temos mais passado que futuro, e o verão ganha contornos urgentes e vitais. Voltarei para buscar todos os instantes que não vivi junto ao bar? Mas onde é que eu estava com a cabeça?

Sophia ri-se de mim nesses primeiros dias de setembro, quando o outono se aproxima da Europa e o calor se apaga, lentamente, para anunciar o fim da festa.

2.

Só há uma coisa mais entediante do que escutar as férias dos outros. É ouvir os outros a amaldiçoar as férias por causa dos "turistas". Os turistas estão em todo lado. Os turistas lotam aeroportos, museus, restaurantes. Os turistas são uma praga ruidosa que fazem de agosto o décimo círculo do inferno.

Nessas lamúrias, nunca passa pela cabeça dos veraneantes a ideia singela de que eles também são "turistas" (e não "viajantes", como me disse um amigo em tempos, plagiando Paul Bowles). E que os outros talvez se queixem deles nos mesmos termos, com o mesmo desprezo e a mesma cegueira.

Em agosto, deixei de frequentar certas cidades na Europa (Londres, Paris) e certos destinos que amo (a Itália inteira, basicamente). Mesmo Lisboa é zona a evitar, se puder evitar.

Mas não me queixo: o turismo, que horroriza os pedantes, representa uma fatia salvífica na economia da Europa do Sul (17% do PIB em Portugal, 20% na Grécia, 14% na Espanha). É o único petróleo que existe por estas bandas.

Além disso, as enchentes de verão na Europa também se explicam porque há uma parte do mundo que vai enriquecendo com a tão criticada globalização. Informa a Economist que, na Índia, as classes médias emergentes começaram a viajar como nunca, triplicando os seus gastos no exterior no espaço de uma década.

Desprezar os "turistas" é, no fundo, desprezar a ousadia dos pobres, ou dos antigos pobres, que também gostam de ver a Torre Eiffel, o Big Ben e a Fontana de Trevi.

Regular os fluxos turísticos, até por razões de segurança e salubridade, é uma coisa. Outra, bem diferente, é tapar o nariz com horror só porque os outros têm os mesmos privilégios que eram exclusivos dos ocidentais.

Centro histórico de Lisboa cheio de turistas em uma tarde de setembro
Angelo Abu/Folhapress

3.

Veja só: eu, fazendo exercício, amaldiçoando a academia, o personal trainer e o mundo ao redor. Mas é um ritual: chega setembro e, vergado pela culpa, marcho para a tortura. "São só cinco quilos", eis o meu mantra, para me animar. Tudo termina antes do Natal, exceto os cinco quilos a mais.

Desta vez não pode haver desistências, avisa o personal trainer, que já conhece as minhas manhas há vários anos.

Ferido no meu orgulho e arrastando pesadamente a carcaça na esteira de corrida, começo uma longa dissertação sobre o culto do corpo. "É uma coisa fascista, sabia?"

O rapaz ignora-me ostensivamente. Não me calo e, com redobrada fúria, conto a história de Friedrich Ludwig Jahn, um alemão nacionalista de inícios do século 19 que lançou a moda das academias modernas. "Os nazistas gostavam muito dele, sabia?"

Nada. Nenhuma reação. Apenas as palavras "ainda faltam dois quilômetros", proferidas com gélido cinismo.

Onde estão os antifascistas quando mais precisamos deles?

4.

Sou filho de professores. Setembro era o mês de todos os recomeços. Eu voltava para a escola, eles também, e o meu pai dizia que nunca se envelhece realmente quando somos professores. "O tempo passa", explicava ele, "mas em setembro todos os alunos voltam a ter a mesma idade". Ser professor era partilhar dessa eternidade.

O meu pai já cá não está, mas é nele que penso, todos os anos, quando entro na sala e encontro novos rostos com os mesmos 18 anos. Embora alguns deles me pareçam familiares. "A sua cara não me é estranha", digo então, surpreso e intrigado.

O aluno sorri e responde: "O senhor foi professor do meu pai".

Bye-bye, eternidade.

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