Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho
Descrição de chapéu

Gotas de garoa e tampas de privada

Nos poemas de Forte Apache, experiências comuns ganham uma dobrinha a mais

Um filme bastante boboca, feito em 1977, ficou famoso por mostrar Jane Fonda sentando na privada para urinar. Em presença do marido, aliás. 

A ideia não era apenas apostar na liberação dos costumes mas também a de que o cinema deveria valorizar o seu papel de “registrar” as coisas, tais como ocorrem, sem obedecer às imposições da história a ser contada.

Ilustração coluna Marcelo Coelho
Ilustração coluna Marcelo Coelho - André Stefanini

Não sei se dava muito certo, pelo menos num filme comercial. A narração exige alguma economia de linguagem; a cena “gratuita”, ao menos para mim, sempre incomoda.

Tudo muda quando se faz poesia. A mera anotação de um detalhe, em poucos versos isolados, traz sua própria justificativa.

Veja-se o que faz Marcelo Montenegro, no seu recém-lançado “Forte Apache” (Companhia das Letras). No final de um poema, ele registra simplesmente “a garoa/ que a luz de um poste revela”.

Todo mundo já teve essa experiência: você não sabe se ainda está chovendo, e tira a teima vendo as gotas que atravessam um facho de luz. Mas ninguém, que eu saiba, lembrou-se de fixar isso no papel.

Uma coisa é ter a experiência, outra coisa perceber que teve; uma coisa é viver, outra saber que está vivendo.

Claro que, em poesia, são importantes as ideias, as metáforas, as relações entre isso e aquilo. Mas há também, na imagem poética, algo de “imanente”, que funciona por si só.

Marcelo Montenegro tem precisões de japonês nesse tipo de escrita. “Penso nas caretas/ que os músicos fazem/ quando estão solando./ No meu pai me dizendo/ que tudo isso aqui era mato”, diz ele, e termina: “Penso em calços de papelão/ para pianos mancos”.

O leitor pode, claro, imaginar o que há de comum nessas três imagens, ou em outra do mesmo texto: “penso naquela única gota gelada/ do chuveiro quente”.

O mais provável é que esses versos se refiram apenas ao que de fato estão descrevendo: cada imagem é apenas isso —uma gota isolada, que se percebe mas não se fixa, despencando de um cotidiano indistinto.

Cotidiano indistinto e comum, nos dois sentidos da palavra: não só banal, mas compartilhado por qualquer pessoa também.

“Agora mesmo”, diz o poeta, “alguém deve estar limpando/ cuidadosamente o CD com a camisa,/ pulando a ponta do pão Pullman,/ sentindo o baque da privada gelada,/ perguntando quanto está o metro/ daquela corda de nylon [...],empurrando o filho/ no balanço com uma das mãos/ e na outra equilibrando/ a lata e o cigarro”.

O que lemos é a ponta dos verdadeiros icebergs de tédio, de prazer, de desconforto, de autointeresse e distração que compõem a substância da vida.

Marcelo Montenegro parece resumir o seu programa num texto que sem dúvida atrai a simpatia de todo leitor. Chama-se “Eu costumava grifar meus livros”.

Depois, conta ele, “passei a achar que os grifos redirecionavam muito as releituras./ E os substituí por microdobradinhas/ nas páginas.”

Acontece que, mais tarde, nem mesmo ele encontrava a frase que lhe tinha chamado a atenção.

Melhor escrever, portanto. “Afinal, de onde vêm os versos/ senão dos grifos e dobradinhas/ que aplicamos na existência, momentos que roubamos do mundo”?

Reunindo três livros curtos de poesia (o primeiro, “Orfanato Portátil”, é de 2003), este “Forte Apache” mostra o quanto Montenegro foi se aperfeiçoando nessa arte das “dobradinhas”.

Muita coisa, antes, vinha sobrecarregada de intenção “poética”. Coisas bem ruins (“o eterno despido de um uivo”) conviviam, num mesmo poema, com a simplicidade e a graça (“a cara de quem acorda sem saber onde”).

E havia muito daquele recurso, talvez inevitável em qualquer poesia, do que poderíamos chamar de “possessivo metafórico”.

Por exemplo, “a ioga da sedução”, “boleros do amanhecer”, a “ampulheta do crepúsculo”. Não dá pé.

Melhor ficar naquilo que, sem dúvida aprendendo de Mario Quintana, “Forte Apache” traz de cotidiano, livre de intenções —como um “cheiro de perfume/ no elevador vazio”, ou a mulher que “pede para eu apertar o pause/ e vai ao banheiro/ deixando ao meu lado/ seu cheiro quente/ no travesseiro amassado”. 

Pablo Neruda, no seu “Tango do Viúvo”, também ouvia a mulher urinando no banheiro; aqui, Marcelo Montenegro diz: “ouço sua bunda/ desgrudar-se da tampa/ que bate seca/ e levemente na privada”. Ele imagina uma “grande sequência” de cinema. Não: a poesia dá mais conta.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.