Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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O radical deixou faz tempo de ser chique

Extremismo politicamente incorreto cria otários e hipnotiza como um buraco negro

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Dizem, com razão, que bons sentimentos não fazem uma boa obra de arte. Essa verdade geral acaba produzindo, às vezes, efeitos duvidosos.

Alguns "malvados" e representantes do "politicamente incorreto" conseguem valorizar suas ações no mercado da fama literária. Retratando de forma positiva a violência e o preconceito, vendem-se como conhecedores profundos da alma humana.

Despeje sobre o conteúdo repugnante uma cobertura espessa de xingamentos, invectivas e gírias de policial, e você terá chance de ser respeitado como um autor ousado, certamente "perigoso", mas, bem, de uma "estatura literária" que "não tem nada a ver" com a circunstância de você ter apoiado Hitler ou a ditadura militar.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

De Louis-Ferdinand Céline a Rubem Fonseca, há autores capazes de assegurar, com isso, um lugar paradoxalmente honroso no mundo das letras.

O "politicamente correto" tem seus ingênuos, seus chatos e seus censores. Mas existem também os ingênuos do outro lado —os que, com medo de passarem por otários dos bons sentimentos, tornam-se otários do anti-humanismo, do preconceito e da escrotidão.

Claro que há prazer em ouvir torrentes de bobagens pronunciadas em altos brados e com grande virtuosismo vocabular. O efeito é em parte liberador.

Há também o puro espanto diante de um discurso que não hesita, que não se controla, que não recua: sem abrir espaço para a autocrítica, a fala radical se torna incriticável.

Nada interrompe sua fluidez, que nasce de um ponto fixo, de uma certeza fatal. Se alguém diz "opa, espera aí, também não é assim", sua atitude parecerá sem graça. Menos convicta que a do orador alucinado.

E este não consegue parar, nem quer. Produz sentenças, alegorias e comparações ao infinito. Quanto mais limitado e férvido o núcleo de seu pensamento, mais atrai para sua órbita qualquer coisa que passe pela frente: tudo lhe será alimento, pronto a ser identificado e destruído graças à sua energia fusional.

O buraco negro hipnotiza quem está assistindo: "Onde isso vai parar?".

Bons tempos em que a editora Brasiliense tinha uma coleçãozinha de bolso intitulada "Encanto Radical". O termo, na década de 1980, era algo inócuo. Freud, Proust, Keynes e Lacan foram "radicais"? Bem, sim, a seu modo... e entraram para a série de biografias.

Mas o "radical", na época, era apenas chique. O falatório radical de hoje não tem nada de chique, e quem torcer o nariz diante de uma barbaridade contra índios ou agricultores sem-terra será acusado de ser... Exatamente isso: um chique. Mas, ainda que ignore tudo sobre a vida de índios ou sem-terra, está apenas tentando se manter humano.

Nada de tão espantoso. Além da política e da economia, tudo leva a esse fascínio pela falta de limites. Vivemos numa época em que os "esportes radicais" suplantam a chatice regulamentada das Olimpíadas, e em que o boxe se assemelha a uma espécie de tricô, perto da sangreira do UFC feminino.

Quanto aos bons sentimentos, é claro que não fazem boa literatura. Mas há literatura maravilhosa feita com bons sentimentos. Penso em "O Fantasma de Canterville" e em "O Leque de Lady Windermere", de Oscar Wilde, em "Ressurreição", de Tolstói, na "Morte do Lobo" de Vigny.

Sem chegar a esse nível —claro—, uma minissérie inglesa, disponível na Netflix, também tem o mérito de não se envergonhar dos bons sentimentos. Chama-se "After Life" ("Vocês vão ter de me engolir", em português) e tem Ricky Gervais na direção, no roteiro e no papel principal.

Acompanhamos, em seis capítulos, os dias rigorosamente iguais de um repórter que trabalha no minúsculo jornal de uma cidade menor ainda do interior da Inglaterra. Tony está despedaçado pela morte recente da mulher.

Resolve então se vingar de tudo. Diz e comete barbaridades engraçadíssimas. Passa todos os dias na frente de uma escola primária. Um menino o encara: "Você é pedófilo?".

A resposta: "Não. Mas se eu fosse, eu nunca me sentiria atraído por você, que é gordo, chato, feio e tem o nariz escorrendo". Ele fará coisas piores com o mesmo menino --e com o carteiro, o chefe, a enfermeira do pai, o entregador de jornal...

Terá de encontrar, alguma hora, o caminho do Bem. Sem dúvida, a diversão está na imprevisibilidade de sua bile, de seu talento para o politicamente incorreto. Mas a beleza da história está em outro lugar. O certo, aliás.

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