Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Peça-documentário explica sem chatice a crise financeira de 2008

'O Poder do Sim', de David Hare é lançado agora numa bem cuidada edição brasileira

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Muita gente ainda se lembra, acho, de uma foto que apareceu durante a crise financeira de 2008. Os funcionários do Lehman Brothers, banco de investimento que derreteu em setembro daquele ano, saíam do prédio carregando suas caixas de papelão.

Estavam no olho da rua. Nas caixas de papelão, todo mundo pensou que levavam documentos, registros, artigos pessoais.

Na verdade, eles carregavam sanduíches, chocolates, iogurtes. A explicação é que eles ainda tinham créditos na lanchonete da empresa. Antes que tudo fechasse, o melhor a fazer era pegar o que tinha sobrado do massacre.

Só fiquei sabendo disso agora (me desculpem), ao ler uma peça do inglês David Hare, dedicada
a explicar o colapso de 2008. 

É “O Poder do Sim”, que aparece agora numa bem cuidada edição brasileira (ed. Temporal), com tradução da atriz Clara Carvalho, prefácio da pesquisadora Anna Camati e posfácio da economista Leda Paulani.

Ilustração com formas geométricas de diversos tamanhos e irregulares. Dezessete retângulos brancos, com retângulos pretos em seus centros e linhas pretas ligandos as arestas da forma interna com a externa. O fundo é azul.
André Stefanini/Folhapress

Quando esteve na Flip, alguns anos atrás, David Hare apontou uma das carências do teatro
contemporâneo —e talvez do teatro de outras épocas também.

Os dramaturgos estão quase sempre voltados para problemas de relacionamento —casais, famílias, grupos de amigos. Nada contra, dizia David Hare, mas há tantos outros assuntos! 

Ele podia falar disso com autoridade. Escreveu uma peça sobre a Guerra do Iraque, em que os personagens eram George Bush, Dick Cheney, Condoleezza Rice e companhia. 

“O Poder do Sim” traz ao palco o magnata George Soros e o ex-presidente do banco central americano Alan Greenspan, além de jornalistas, banqueiros e políticos reais.

É uma aposta radical. Se fosse uma chatice, nem sequer teria sido escrita. O compromisso de David Hare é ser didático, interessante, rápido, crítico e sem clichês.

A peça põe um “Autor” em cena —que, como a maioria das pessoas, entende pouquíssimo de finanças. Ele interrompe seus personagens. “Espere um pouco. O que é fundo de hedge?”  Tudo é explicado rapidamente.

Uma personagem adverte o Autor: se for para dizer que os banqueiros são canalhas, não vale a pena escrever peça nenhuma —os espectadores já sabem disso.

“O Poder do Sim” vai mais fundo no assunto, tratando a crise não como uma questão moral, mas como de confiança num sistema que ninguém soube questionar.

Veja o que acontecia com alguns bancos. Os lucros cresciam loucamente. Suponha que um banqueiro comece a desconfiar que a coisa está indo longe demais.

Se ele resolve puxar o breque e vender os papéis que estavam rendendo tanto, seus clientes irão reclamar. Que banco sobrevive, meses ou anos a fio, oferecendo papéis menos lucrativos que os de seu concorrente? 

Havia, é claro, um sistema de crenças por trás disso. Alan Greenspan, como se sabe, seguia a doutrina ultraliberal da pensadora Ayn Rand (1905-1982), hoje bastante popular entre os direitistas brasileiros.

A ideia é que cada investidor, cada agente econômico, age em benefício próprio (o que é verdade, geralmente). Consequentemente (mas isso não é verdade), nenhuma regulação governamental seria mais inteligente ou bem informada do que a soma cega das decisões individuais. 

E, se alguma decisão individual se provar errada, bem feito.

O pateta vai à falência e o sistema premia os mais racionais. 

Só que não era possível deixar os maiores bancos do mundo irem para a cucuia; o governo teve de pagar pela imprudência de todos.

Imprudência? Ninguém sabia dos riscos reais que estava correndo, porque alguns economistas (vencedores do prêmio Nobel, aliás) inventaram uma fórmula supostamente infalível, capaz de medir a confiabilidade de qualquer investimento futuro.

David Hare apresenta esses dilemas com clareza e de uma forma, se não divertida, bastante movimentada.

É como no episódio das caixas de papelão. 

Ninguém sabia o que estava dentro —até a gente entender que, na economia, sempre alguém pensou antes em como se dar bem, do modo mais fácil. Quando tudo se esclarece, estamos diante de uma realidade tão surpreendente quanto ridícula, e tão óbvia quanto absurda.

Mas tenho medo que aconteça aqui o que já experimentei nos documentários de TV que explicam a teoria da relatividade. Na hora, entendo. Uma hora depois, esqueço e continuo tão ignorante como sempre.

Talvez não seja só culpa minha. Depois da crise, Alan Greenspan reconheceu suas próprias ilusões ultraliberais. Mas, pelo que sei, elas continuam em vigor em toda parte.

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