Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Será que, no governo Bolsonaro, a história se repete?

É possível que o presidente esteja descobrindo outro caminho para prosseguir em seu delírio destrutivo

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A frase de Marx é bem antiga e já virou lugar-comum: primeiro a história ocorre como tragédia, depois como farsa. No governo Bolsonaro, as coisas são um pouco diferentes.

Tudo começou como farsa, e agora se repete como história.

As grandes palhaçadas de Weintraub, a goiabeira de Damares, o siricotico de Regina Duarte, a imitação de Goebbels patrocinada por Roberto Alvim —tudo isso estava de acordo com a ignorância de Jair Bolsonaro e com o olavismo que o circunda.

Mas é possível que o presidente esteja descobrindo outro caminho para prosseguir em seu delírio destrutivo e em sua ignorância essencial.

O auxílio mensal à população de baixa renda sem dúvida garantiu o aumento de dez pontos porcentuais nos seus índices de aprovação.

Ilustração com quatro ouroboros
André Stefanini/Folhapress

Talvez com isso estejamos passando da pura farsa ao momento da repetição histórica.

No governo Lula, o Bolsa Família e os muitos outros programas fizeram a passagem —que foi longa— da doutrina de esquerda ao assistencialismo carismático.

Os setores mais puros do petismo foram debandando aos poucos, e a base clássica do partido (classe média intelectualizada paulista, sindicatos, esquerda católica) deu lugar ao apoio indiferenciado dos realmente pobres e do eleitorado do Nordeste.

Entre o velho PT e os malucos de Bolsonaro a diferença é total, e nem seria o caso de lembrá-la se a memória das pessoas não andasse tão fraca.

O processo, entretanto, é parecido. Na conjunção de direita que elegeu Bolsonaro, a classe média se reconhecia em Sergio Moro, no MBL, nos mauricinhos do YouTube. A rejeição aos políticos fisiológicos e à corrupção também era forte no PT de 30 anos atrás.

Com sinais inversos, propósitos —insisto— muito diferentes e níveis intelectuais e humanos avessos a qualquer comparação sensata, as duas presidências parecem conhecer um caminho semelhante.

Como Lula, Bolsonaro se aproxima do centrão. Como Bolsonaro, Lula procurou apoio nos pastores da Record.

De alguma forma, a triste realidade política e social do país se impõe sobre o fanatismo de Bolsonaro, como se impôs sobre o purismo ideológico do PT.

A direita que votou em Bolsonaro acusava o PT de “comprar o voto dos mais pobres”, inventando o Bolsa Família para “sustentar vagabundos”, como “o próprio Lula”.

Diante do mega-auxílio determinado pela Covid, silencia.

A classe média, que abominava o mensalão, vê as mesadas de Queiroz e a aproximação com Roberto Jefferson sem alegria. Esfriou sua confiança em Bolsonaro.

Resta a última esperança liberal, o ministro Paulo Guedes.

Mas também aqui o movimento é de se render à realidade. Nos mais diversos governos, de direita ou não, pisa-se fundo nos gastos públicos e se fala em aumento de impostos.

O Brasil tem níveis de desigualdade tremendos, dezenas de milhões de miseráveis, infraestrutura em pandarecos, investimentos em falta.

A direita não trata desses problemas do mesmo modo que a esquerda. Mas, a menos que elimine o voto e as pesquisas de opinião, acaba tendo de tratar.

Minha hipótese era que o governo Bolsonaro era louco a ponto de ignorar isso; talvez eu tenha me enganado.

É claro que enfrenta as coisas do jeito dele. O plano, por aqui, é claramente sufocar a educação e a saúde pública. A renda mínima servirá para que os pobres, no futuro, venham a pagar com o próprio bolso seus péssimos planos de saúde, suas ainda piores faculdades particulares e suas arapucas previdenciárias. A iniciativa privada agradece.

Enquanto isso, e apesar disso, Paulo Guedes vai fazendo o que não gostaria de fazer: esquece-se um pouco da austeridade, o mantra que tantos analistas repetem em estado de hipnose.

Entendo pouco de economia, mas tenho alguma memória.​

Quando Dilma Rousseff estava no governo, tínhamos uma inflação crescendo a olhos vistos e juros em alta. Hoje, a inflação está baixíssima e os juros praticamente negativos. Não faz sentido recomendar a um bombeiro que economize água durante um incêndio.

Seja como for, alguns assessores mais ortodoxos já saíram da equipe de Paulo Guedes. Talvez ele próprio seja um dos últimos bastiões de purismo no governo. Ricardo Salles terá de sair alguma hora, por pressão internacional.

Os absurdos, as violências, os repetidos atos contra a liberdade de imprensa, o avanço do autoritarismo, a estupidez fundamental do bolsonarismo continuarão sempre que possível. O aumento nas pesquisas anima o presidente a querer esmurrar a boca de uma jornalista.

Diante do fanatismo e da loucura, entretanto, até o populismo eleitoral pode ser um fator de moderação. Tenho medo de sustentar essa hipótese; de resto, não sei se adianta. Quando a lógica vai para o espaço, qualquer hipótese vale pouco.

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