Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho

Crueldade da guerra na Ucrânia é exposta em poemas por suas vítimas

Ilya Kaminsky, no livro 'República Surda', cria imagens que se materializam no conflito disparado pela Rússia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O país estava ocupado militarmente; soldados de jipe já tinham avisado que qualquer reunião pública estava proibida. Mas, naquele dia, um teatrinho de bonecos faz seu espetáculo na praça da cidade. As pessoas se sentam para assistir. Há um menino surdo na plateia.

No palquinho, um fantoche representa o papel de sargento. Petya, o menino surdo, espirra. O fantoche desmaia de susto. A plateia ri.

Aparece um sargento de verdade na praça, ordenando o fim da reunião. O fantoche imita o sargento real —"dispersar!". O público gela de medo. Mas o menino surdo continua achando graça e batendo palmas.

Ilustração representando um corpo deitado e vestido com as cores da bandeira da Ucrânia diante de um coturno de um soldado
Ilustração publicada em 8 de março - André Stefanini

O sargento de verdade aponta o dedo para o menino: "Você aí!". O fantoche repete: "Você aí!". Sonya, a mulher do teatrinho, olha o fantoche que tem nas mãos. O sargento de verdade olha para Sonya e para o marido dela, Alfonso.

"O resto de nós", continua o poema, "olha para Petya, que se curva para trás, junta o máximo que pode de saliva na boca, e dá uma cusparada na cara do sargento".

Segue-se a última frase: "O som que não ouvimos espanta as gaivotas para longe da água".

O título do poema é "Um Tiro".

É uma das primeiras peças de um livro chamado "República Surda", ou "República dos Surdos", publicado pelo ucraniano Ilya Kaminsky em 2019. Nascido em Odessa em 1977, ele se fixou nos Estados Unidos em 1993. Seus pais tinham obtido asilo político lá. Perdeu praticamente toda a audição aos quatro anos, depois de pegar caxumba.

Sua língua materna é o russo, mas ele escreve em inglês. "Deaf Republic" está disponível no Kindle, e uma seleção de seus poemas pode ser encontrada no site poetryfoundation.org.

Não é que ele tenha sido sobrenaturalmente profético no que diz respeito à invasão da Ucrânia pela Rússia. Desde 2014, o regime de Putin já tinha abocanhado parte do território ucraniano.

Organizado como uma série de poemas, que podem ser lidos independentemente, "República Surda" é também uma narrativa, com diversos personagens. São apresentados na página inicial, como numa peça de teatro.

Como se sabe, Volodimir Zelenski foi ator cômico antes de virar presidente da Ucrânia. O fato de os personagens do livro serem manipuladores de fantoches surge, assim, como uma curiosa transposição poética.

Mas não há nada de óbvio ou de direto nos versos de Kaminsky. Uma poética da omissão, do não dito, está presente no livro —como se vê pelo "corte" cinematográfico do poema que citei. Não vemos nem ouvimos o tiro que mata o menino surdo: só o seu efeito de espantar as gaivotas.

Depois do tiro, a história continua. Os soldados se retiram da praça, e Sonya se ajoelha ao lado do menino morto. Endireita os óculos dele. "Está nevando, e os cachorros correm pela rua como enfermeiros."

No dia seguinte, "A surdez, uma insurgência, começa". Todas as pessoas do país se recusam a ouvir as ordens dos soldados. "Às seis da manhã, quando os soldados dizem bom dia para as garotas no passeio público, elas passam de lado, apontando para suas orelhas. Às oito, bate-se a porta da padaria na cara do soldado Ivanoff, que era seu melhor freguês [...] às 11h, as pessoas começam a ser presas."

"Nossa audição", continua o poema, "não diminui, mas algo silencioso em nós se fortalece".

Tudo poderia ser grosseiramente alegórico, mas Kaminsky é poeta demais para isso. O leitor não tem dificuldade em entender o que se passa na história, mas a mudança dos pontos de vista é constante, e surgem, de quando em quando, metáforas misteriosas, que funcionam sem que se saiba muito por quê.

"O corpo do menino jaz no asfalto como um clipe de papel." Uma imagem de fragilidade, será? Ou porque a rua, coberta de neve, é como uma folha de papel? O menino está, quem sabe, com as pernas encolhidas, os joelhos perto do rosto? Ou são os seus dois braços que ficaram paralelos ao corpo, mas levemente separados?

Ficamos pensando na comparação, sem decidir muito sobre como interpretá-la e passamos para o verso seguinte, que traz outra imagem.

"O corpo do menino jaz no asfalto como o corpo de um menino."

A lembrança, sem dúvida, vem de um verso do "Inferno" de Dante Alighieri: "e caddi come corpo morto cade" —"e caí como cai um corpo morto".

Mas Ilya Kaminsky, como poeta bem moderno, dá uma nova volta nessa repetição, criando um verso de força excepcional. O que era "metáfora" ou "símile", como queiram, vira realidade. O mundo "literário" emudece, e o mundo, sem mais, toma o seu lugar.

Entre minhas muitas torcidas no momento, está a de que o traduzam no Brasil.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.