Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Ver 'Borgen' nos alivia dos palhaços e milicianos que tomaram conta do Brasil

Série sobre políticos dinamarqueses expõe negociações duras, mas não se fala em barras de ouro ou dólares na cueca

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Não sou dos que fazem maratonas de seriado. Prefiro ver o meu sagrado episodiozinho de cada dia, no horário certo, pontuando a rotina com aquele tempo de absorção total.

Nos últimos tempos, fiquei preso a "Borgen", série dinamarquesa disponível na Netflix. O assunto é política —com os inevitáveis, e no caso até bem-vindos, complementos de romance e drama familiar.

Política: isso existe ainda? As duas primeiras temporadas se passam em 2010, e a Dinamarca é uma monarquia parlamentar. Não há Twitter nem Instagram; jornais e, principalmente, o noticiário da TV ainda constituem o palco das disputas de poder.

Ilustração que representa o desenho de uma mulher branca de cabelos castanhos longos e amarrados, vestindo um terno preto e com brincos em forma de dados
Ilustração publicada em 3 de maio - André Stefanini

É lá que Katrine, a jovem repórter e âncora do noticiário, briga com seu chefe, articula-se e rivaliza com outros profissionais, pressiona (ou não) seus entrevistados.

Outra mulher, a primeira-ministra Birgitte Nyborg, alterna com a jornalista as torcidas e identificações do público.

Não era algo que eu esperasse da Dinamarca de dez anos atrás, mas o machismo ainda se manifesta de forma bem explícita. Não com Philip, o marido-modelo da primeira-ministra, mas com quase todos os políticos que não resistem a infantilizar a bela jornalista, e com o "irresistível" assessor de imprensa do governo, que tropeça em loiras e ruivas a cada episódio.

Fora essas atitudes pessoais, há o "patriarcalismo estrutural" de uma situação em que a protagonista se divide entre dois filhos e um trabalho que ocupa todas as suas atenções.

"Borgen" faz um retrato bastante plausível de como funciona a política numa democracia. Ou melhor, de como funcionava.

O efeito da série é quase terapêutico, sem ser escapista. Vemos alguém bastante decente no governo de um país. Serve-nos para descansar um pouco dos palhaços, dos milicianos, dos incendiários e imbecis que tomaram conta do Brasil.

Birgitte Nyborg age dentro de limites éticos muito aceitáveis; o seriado faz com que a admiremos de forma um pouco irrealista, mas ainda assim não idealiza demais.

Mesmo nesse ambiente controlado, certamente a política não é uma coisa bonita de se ver. A cada episódio, a primeira-ministra vê um aliado ou um ministro agindo de forma pouco confiável.

Cada personagem tem algo a esconder, e se prepara para o momento em que poderá derrubá-la do governo.

O parlamentarismo tem essa característica: mudanças governamentais podem ser feitas sem novas eleições e sem impeachment. Ao mesmo tempo, não difere muito do presidencialismo num aspecto, o de que é preciso manter satisfeitos os partidos de sua base.

Pelas circunstâncias da história, a protagonista pertence a um partido que não tem maioria absoluta no parlamento; a linha entre partidos de oposição e partidos que a apoiam não é das mais nítidas, e Birgitte tem de negociar o tempo todo.

Cena de série representando uma mulher branca e loira tendo atrás de si um homem, também branco e loiro
Cena da série dinamarquesa 'Borgen' - Divulgação

Aí é que as diferenças com o Brasil se tornam mais claras. As negociações dinamarquesas são duríssimas, às vezes frustrantes, e nem sempre bonitas. Não se fala, entretanto, em barras de ouro, dólares na cueca, diretorias de estatais.

De um lado, há a negociação puramente programática: para aceitar uma política mais tolerante com refugiados, o partido mais à direita da coalizão exige que controles sobre fábricas poluentes sejam adiados por cinco anos. O partido dos ecologistas reclama; a primeira-ministra tem de falar manso, ou falar forte, conforme o caso.

A ética, nesse ponto, já sofre um pouco; o partido ecologista vai ter de abandonar parte de suas exigências se quiser se manter no poder, e seu líder é obrigado a explicar para os eleitores as concessões que fez.

Mais um passo duvidoso: é sempre possível vazar para a imprensa algo de errado que os seus aliados andaram fazendo. Ou prometer segredo sobre o fato.

Num plano mais geral, podemos perguntar se não é também corrupção, em alto nível, fazer alguma vista grossa aos abusos de um xeique árabe ou ditador africano que irá trazer milhões de dólares ao seu país, comprando armas que certamente irá usar em algum massacre.

E, enquanto você se debate sobre esses dilemas éticos de alto nível, os tabloides, os jornalistas de escândalo e os trogloditas do populismo de direita exploram o preconceito e a ignorância do eleitorado.

Não é coisa para escoteiros; a política nunca é. Mas parece um paraíso em comparação com o que temos por aqui. Tratava-se de um jogo entre adultos. Não entre pivetes armados ou condenados de tornozeleira.

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