Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Dormideiras não se deixam enganar, como nós por Bolsonaro

Ameaças repetidas ou novas ensinam arbusto 'Mimosa pudica' a reagir certo

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A entrevista de Jair Bolsonaro ao Jornal Nacional trouxe à memória uma planta, Mimosa pudica, a popular dormideira. Não pelo pudor, ao contrário. E sim porque ela, ao menos, aprende algo útil com a repetição de estímulos ameaçadores.

Não é o caso dos brasileiros. Quanto mais o presidente mente, achincalha e desconversa, mais reagimos com objetividade, desmentidos, argumentos —arsenal que já se provou incapaz de torpedear a bolha de seus eleitores nas redes sociais.

Melhor voltar a atenção para a M. pudica. Uma diversão da meninada que ia a pé do centro de Ubatuba à praia do Perequê-Açu era mexer nas folhas compostas do arbusto, que se fechavam de pronto ao simples toque. Inesquecível.

Imagem mostra um dedo encostando em uma planta dormideira, que fecha quando é tocada
'Mimosa pudica', a popular dormideira - Krishnendu Pramanick por Pixabay

Para um vegetal, a reação rápida é surpreendente. Pensamos em plantas como seres imóveis, enraizados, presos que estamos ao ritmo animal baseado na locomoção (ataque ou fuga) como estratégia de sobrevivência.

Há um livro inquietante sobre o que humanos podem e devem aprender com esses seres tão estranhos e fundamentais: "A Revolução das Plantas - Um Novo Modelo para o Futuro", de Stefano Mancuso. Saiu no Brasil pela editora Ubu.

O botânico da Universidade de Florença ganhou fama propagando a noção de que nossos conterrâneos verdes (conterráqueos?) são seres inteligentes, ao contrário do que se acredita. Tão mais inteligentes que teriam inventado uma internet de raízes muito antes de nós e a usam para trocar informações vitais, não fake news.

Os argumentos estão no livro, intrigantes e instigantes, e mais ainda as conclusões filosóficas e políticas que extrai. Não haverá spoilers aqui, a não ser para resgatar do livro um experimento maluco com as dormideiras.

Mancuso narra que as plantas sensitivas, como a M. pudica das Américas, despertaram interesse de botânicos quando chegaram à Europa. Estudiosos do porte de Robert Hooke (1635-1703) e Jean-Baptiste Pierra Antoine de Monet, chevalier de Lamarck (1744-1829), ficaram encantados com essa rara capacidade em vegetais.

Lamarck intrigou-se com o fato de a dormideira deixar de fechar as folhas com a repetição do estímulo. Atribuiu isso ao cansaço: a partir de certo ponto, a planta não teria mais energia para despender em reações tão velozes.

Outro botânico francês, René Desfontaines (1750-1833), teve a ideia de levar vasos de dormideiras para passear de carruagem por Paris. Após umas tantas vibrações do cupê sobre o calçamento, claro, as folhinhas pararam de se recolher.

As plantas se acostumaram à trepidação. Em outras palavras, são capazes de reter informações em sua memória, onde quer que esta se localize nelas.

Em 2013, o laboratório de Mancuso submeteu dormideiras a uma queda brusca de 10 cm, e as plantas reagiram como esperado. Primeiro, se fechando; depois, parando de fazê-lo.

Introduziu-se então um novo estilo de deslocamento, horizontal, e as plantinhas de imediato voltaram a se encolher. Além de memória, mostraram capacidade de distinguir estímulos inócuos de outros, novos, potencialmente ameaçadores.

Presidente Jair Bolsonaro gesticula em entrevista ao Jornal Nacional
Presidente Jair Bolsonaro em entrevista ao Jornal Nacional - Reprodução

Bolsonaro nos trata como seres menos inteligentes que dormideiras. O segredo de seu experimento incivil é nunca variar a natureza das ameaças, só o grau: em três décadas, sempre explicitou o intento de devastar a democracia, a natureza e a ética.

Nós, brasileiros, nos acostumamos a suas investidas e relaxamos. Mas, quando os estímulos se tornaram letais com a pandemia, o rearmamento, a fome, o racismo, a misoginia e o desmate, seguimos inertes.

As dormideiras são mais espertas que nós.

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