Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

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Marcos Lisboa

Reforma tributária

Produtores escolhem técnicas de produção menos eficientes por causa de distorções tributárias

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Maria gerencia a fábrica da família, que fatura R$ 100 milhões por ano. Muitos sócios trabalham no empreendimento. O negócio foi fundado por seu bisavô e os herdeiros são mais de 30. Tirando os custos de material, aluguel, equipamentos e serviços de terceiros, restam R$ 12 milhões por ano para pagar funcionários e distribuir lucros para os acionistas.

Salários e encargos somam R$ 6 milhões por ano. Sobram R$ 6 milhões de lucros por ano para serem distribuídos pelos sócios, o que dá pouco mais de R$ 10.500 por mês para cada um, descontado o imposto de renda.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, entre o presidente da Câmara à direita, Arthur Lira, e o do Senado, Rodrigo Pacheco à esquerda - Gabriela Biló -23.maio.23/Folhapress

Um primo distante, Antônio, é profissional liberal bem-sucedido, que fatura, por ano, R$ 30 milhões. O escritório e a equipe que o assessora custam R$ 6 milhões. Ele paga pouco mais de R$ 3 milhões com o Imposto de Renda, restando R$ 20 milhões para gastar como bem quiser.

No Brasil atual, Antônio paga, proporcionalmente, bem menos tributos do que a sua prima distante, apesar de ganhar bem mais. Maria e seus sócios são tributados em 34% do seu lucro. Já Antônio está no regime do lucro presumido e tem uma alíquota abaixo de 15%.

O sistema tributário no Brasil permite distorções ainda maiores do que esse exemplo. Comprar estruturas metálicas e peças pré-moldadas para construir uma edificação implica pagamento de tributos que não geram crédito para o comprador. Em muitos casos, fica mais barato fazer um prédio com os métodos mais arcaicos de alvenaria.

O resultado é um país onde produtores escolhem técnicas de produção menos eficientes em razão das distorções tributárias. Nosso baixo crescimento das últimas décadas não é obra do acaso.

Existem regras especiais por tipo de produto, como bulbo de cebola ou cavalos puro-sangue, desde que não sejam do tipo Inglês. A lista de casos especiais parece interminável, como exemplifica a proposta de reforma do ICMS proposta pelo governo de São Paulo em 2020, Lei 17.293, que foi acompanhada por decretos, como o 65.255, que sistematizavam as intermináveis exceções que deveriam ser revistas.

Os lobbies, contudo, são mais fortes do que o bem comum. As exceções continuam em vigor. Perfume tem uma regra de tributação. Água de colônia tem outra.

Em muitos casos, as empresas podem descontar do que devem pagar ao fisco o que foi gasto para viabilizar a produção do que vendem. Marketing é necessário para o negócio? Depende. Em alguns casos, o fisco acha que sim. Em geral, decide que não.

Muitas lideranças empresariais andam a ficar tensas com a reforma tributária. A carga vai aumentar ou diminuir?

A conta não é fácil. Existe um tal "resíduo tributário"; as obrigações com o fisco embutidas no preço dos bens e serviços que são adquiridos. Alguns fornecedores estão no "regime cumulativo", outros no "não cumulativo". Há gastos que permitem abatimento nos tributos a pagar, mas nem todos. Quais mesmo?

As regras cambiantes, e suas interpretações criativas, resultam no gigantesco contencioso tributário no Brasil, mais de 250 vezes maior, como proporção do PIB, do que nos países da OCDE, ou nos demais países da América Latina, segundo estudo do Insper.

Mas qual a alíquota efetivamente paga pelas empresas? Pois é, não se sabe bem. Existem os tributos pagos diretamente pelo negócio. Mas há também os embutidos nos preços das compras de equipamentos e serviços.

A profusão de regras sobre tributação, por tipo de produto e de serviço, sobre o que pode ser deduzido ou não, resulta em um caótico regime de arrecadação.

Dependendo do negócio, paga-se mais ou menos de tributo pela mesma renda recebida. Economistas, advogados e consultores usualmente pagam menos tributos do que os produtores de máquinas e equipamentos.

A reforma tributária em discussão na Câmara dos Deputados institui um regime simples, que é um primeiro passo para corrigir nossas distorções. Todos os negócios passam a pagar a mesma alíquota sobre o valor adicionado, que se trata, essencialmente, da folha de pagamentos de funcionários e dos lucros dos acionistas.

A totalidade das demais despesas passa a poder ser deduzível dos tributos a serem pagos, incluindo marketing ou serviços de terceiros.

Não há razão para quem fatura com o litígio ser menos onerado do que quem produz carros ou alimentos. Comerciantes e produtores deveriam pagar a mesma alíquota de tributos sobre o seu valor adicionado, assim como economistas e advogados.

A reforma tributária, ao instituir uma única alíquota sobre todas as decisões de consumo, reduz a desigualdade de renda. Atualmente, serviços, demandados em maior proporção pelos mais ricos, são menos tributados do que as mercadorias, que representam a maior parte do consumo das famílias mais pobres.

A imensa maioria das cidades, acima de 98%, receberá mais recursos, pois o novo tributo será destinado para onde as pessoas moram, não mais para onde bens e serviços são produzidos.

A reforma proporciona outros benefícios para os mais vulneráveis.

A política pública é bem mais eficaz ao transferir renda e cuidar dos mais pobres do que tentar fazer redistribuição de renda por meio da tributação sobre o consumo. O Ministério da Fazenda estimou que tributar a cesta básica e utilizar a arrecadação adicional para aumentar o Bolsa Família tem um impacto 12 vezes maior na redução da desigualdade de renda do que o regime atual, que privilegia setores do agronegócio.

O passo seguinte é garantir que lucros e salários sejam tributados progressivamente. Quem ganha mais, deveria pagar uma alíquota maior. Tema da próxima etapa da reforma tributária, a que trata do Imposto de Renda.

Grandes empresas podem ter sócios pequenos, como fundos de pensão, que administram os recursos para pagar aposentadorias de quem esteve no chão de fábrica. Empresas com baixo faturamento podem ter sócios que estão entre os 1% mais ricos do país.

Confundir o tamanho da empresa com a riqueza dos sócios ajuda a perpetuar a nossa desigualdade de renda. As zonas cinzentas das nossas regras de tributação auxiliam quem vive do litígio, mas prejudicam o país.

A reforma tributária é tema arenoso, repleta de sutilezas e detalhes que podem passar despercebidos. Cada alíquota menor de tributação para algum setor que seja incorporada à legislação, cada exceção à regra, significa um privilégio que foi preservado.

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