Marcos Augusto Gonçalves

Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha

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Godzilla, 70, está vivo nos conflitos de nosso tempo

Rei dos monstros nasceu no Japão em 1954 para expressar o horror da era nuclear

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Godzilla, o rei dos monstros, está de volta. Nos cinemas, certamente não contará com minha audiência, mas na vida real não há como ignorá-lo. Dependendo de onde se olhe, o bicho pode assumir as feições de Putin, o autocrata russo que se eterniza no poder. Eis ali o lagartão imparável a cruzar as fronteiras da Ucrânia provocando destruição e medo.

De outro ângulo, contudo, ele bem lembra Binyamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel, que transforma Gaza em paisagem de ruínas e cadáveres.

Pode se parecer também com o cowboy americano e sua insistência no confronto para ser o gendarme do mundo –o que estava, aliás, em sua origem.

Monarch - Legado de Monstros
Cena da série 'Monarch - Legado de Monstros', da Apple TV+, com Godzilla - Divulgação

O primeiro filme do monstrão japonês foi lançado em 1954; está, portanto, fazendo aniversário de 70 anos. O atual Godzilla é uma evolução genética e tecnológica de seu antepassado, que se saiu bem nas telas, escapando do tatibitate visual provocado pela incipiente técnica do stop motion, que foi usada em "King Kong", de 1933.

Quem dava vida à criatura em seu nascimento era um ator, pobre coitado, que vestia a pesada fantasia, e chegou a ter de ser socorrido durante as filmagens após sofrer um desmaio causado por fadiga e calor.

Produzido menos de uma década depois do abominável ataque atômico dos EUA a Hiroshima e Nagasaki, o filme continha uma reflexão sobre a nova capacidade bélica das grandes potências, uma monstruosidade contra a qual não havia, como não há, meios militares de contenção.

Na história, o próprio aparecimento de Godzilla é decorrência de testes nucleares –os EUA na vida real estavam desde 1946 explodindo bombas de hidrogênio nas ilhas Bikini, o atol do Pacífico que acabou dando nome ao maiô de duas peças.

Não era uma incursão tipo trash ao mundo das bestas fantásticas com o intuito de atrair público às salas de cinema de maneira apelativa. Tinha uma intenção, digamos, filosófica. Expressava os temores de uma época, quando se anunciava uma nova ordem mundial marcada pela polarização EUA-URSS.

Os anos da Guerra Fria, com sua espantosa corrida armamentista, anunciaram a capacidade humana de criar artefatos capazes de extinguir a vida sobre o planeta, uma inédita e ameaçadora realidade.

Hoje, quando conflitos internacionais se acirram, novos atores se candidatam a construir bombas nucleares e o mundo volta a conviver com tensões entre polos geopolíticos divergentes, a memória daqueles anos em que Godzilla surgiu é oportuna.

A invasão da Ucrânia e o conflito entre Israel e palestinos são episódios ainda caudatários daquele quadro que se seguiu ao fim da Segunda Guerra. Se o cenário tornou-se menos crítico com o fim da URSS, os prognósticos sobre um mundo unipolar estável, que se encontrava com um promissor e fantasioso "fim da história" não se concretizaram.

Além da retomada do projeto da Grande Rússia sob Putin, a emergência da China como potência econômica, tecnológica e militar ergueu um novo obstáculo à hegemonia ocidental liderada pelos EUA. Nesse tabuleiro, a configuração de alianças que envolvem o chamado Sul Global reforça os prenúncios de uma nova e inquietante dinâmica na política internacional.

Godzilla, como observou um artigo da revista "The Economist", talvez já estivesse em idade de pensar em aposentadoria, mas ao que parece vai recuperando sua antiga simbologia nesse admirável mundo novo em que vivemos.

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