Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Michelle acaba de iniciar uma carreira como bispa e show-woman

Primeira-dama não devia louvar só a Deus, já que vitória do pastor terrivelmente evangélico teve inúmeras peripécias

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Michelle Bolsonaro é conhecida tanto pela Libras, pelos figurinos e viagens como pelo carinhoso e brasileiríssimo apelido de Micheque. Também por cantar sertanejo e por se fantasiar de Branca de Neve.

Nestes dias, tivemos a cereja do bolo: após a confirmação de André Mendonça à vaga no STF, ela "profetizou" recebendo os espíritos e alcançando o êxtase em que os cristãos ungidos por deus falam a língua dos anjos.

Ilustração para coluna da Maria Homem
Ilustração para coluna da Maria Homem - Luciano Salles

Na prática: deu vários pulinhos e falou palavras incompreensíveis para os não iniciados, seguidas das canônicas "aleluia" e "glória a Deus". Foram minutos memoráveis de incorporação de forças psíquicas que normalmente recalcamos e com alta voltagem emocional.

Em momentos assim, pessoas contidas permitem-se extravasamentos, choros e abraços, como vimos na foto viral em que o eleito, de rostinho colado com a primeira-dama, puxava sua cabeça, mais íntimos que a imagem dos amantes de Magritte.

Aqui o segredo da fé: nos ajudar a fazer coisas que não conseguiríamos sem o amparo da ideia abstrata de potência que é deus. "Em nome de deus" buscamos ter força para não cair em tentação, para fazer guerra, para construir templos e maravilhas, para tecer alianças, para fazer família, para não desistir de tudo, para sair do álcool, das drogas ou da sexualidade devassa, para tantas coisas que aqui não caberia desfiar.

Sim, Michelle tinha razão em sua catarse: dessa vez foi seu queridinho que passou e não o do filho de seu marido (filho que já tinha emplacado no ouvido do pai sua primeira indicação ao STF, Kassio Nunes. Aliás, vejamos bem o funcionamento da parceria público-privada chamada Brasil).

Mas ela não devia louvar só a Deus. Como sabemos, a longa saga que resultou na vitória do pastor terrivelmente evangélico teve inúmeras peripécias. Foi articulada inclusive pela esquerda laica e os melhores representantes do pensamento progressista. Como assim? Política: a arte de escolher o menor mal entre os males.

No dia anterior à sabatina no Senado foi oferecido um jantar no Palácio do Planalto para trazer boa fortuna ao jovem candidato de novos cabelos. Houve também comoção e cânticos ao piano, com os pastores presentes no salão. A programação diária do festival foi intensa, com show de estrela gospel e tudo.

Para um cidadão racional da república moderna tudo isso causa estranhamento: no Planalto, sério? Estamos assistindo ao derretimento do Estado laico de direito? Surge uma semiteocracia nacional, sustentada pela cultura da violência que coordena as extrações de riquezas seja da natureza (garimpo, madeira, terra) seja da cidade (droga, arma, extorsão)?

Há pesquisas recentes sobre o crescimento do aparato neopentecostal no Brasil da erosão do Estado como ocupador do espaço público e das milícias. Deus não saiu do Estado, tanto das notas de dinheiro, quanto crucifixos das repartições e bancadas legislativas. Por que? Parece que ainda precisamos de uma ideia transcendental qualquer para nos organizarmos aqui neste mundo.

O que nos leva ao tópico final. Deus é uma grande commodity e o capitalismo imaterial do século 21 está só começando. Eu incluiria o comércio dos deuses no âmbito das artes performáticas (mesma seara da política contemporânea).

Nossa Michelle acabou de iniciar uma carreira como bispa e show-woman. Não adianta fazer apelos à racionalidade ou lamentar o declínio do Brasil e outras "cracias" mambembes mundo afora. Talvez tenhamos que trazer essa necessidade de Deus —tão basal, tão humana— ao centro do debate e começar a regular esse mercado. Sim: impostos (renda, território, trabalho, lucro), transparência, ESG.

Se precisamos de deuses, que ao menos os espertos e os carismáticos estejam sob o domínio das leis. Das leis dos homens e seus ofertórios, as únicas que não cessam de existir.

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