Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem

O Brasil é para principiantes

Estamos na faixa etária dos dois anos no tocante à relação com o outro, o limite e o espaço coletivo

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Há vários resumos possíveis para as várias óperas em curso. Vou propor um: pandemia é uma ótima oportunidade de negócio.

Antes, o presidente e os seus eram do chamado baixo clero. Tinham que ganhar dinheiro miúdo com rachadinhas e construções de prédios nas periferias, tudo organizado pelas milícias. As forças em jogo deram uma sacudida no tabuleiro e a turma conseguiu operar uma imensa ascensão social —chegaram ao topo da pirâmide, a Presidência. Agora que têm o controle das inúmeras pastas e portas que nosso sistema presidencial permite, os negócios podem finalmente se expandir, na graúda. Agora a escala é de milhões, ops bilhões.

Na última semana fomos agraciados com roteiros mirabolantes dessas negociações. O que fica cada vez mais claro é que fazemos negócio, não fazemos política. É o que explicita a frase que já virou rotina nas manchetes do país: o ministro, o general, o presidente, o cabo “se alinham a interesses privados”.

Depoimento de Luiz Paulo Dominguetti Pereira, que denunciou pedido de propina de 1 US$ por vacina, à CPI da Covid
Depoimento de Luiz Paulo Dominguetti Pereira, que denunciou pedido de propina de 1 US$ por vacina, à CPI da Covid - Pedro Ladeira - 1.jul.2021/Folhapress

Contardo Calligaris tinha uma tese curiosa: “Veja a frase ‘O Brasil não é para principiantes’. Isso supõe que a nossa malandragem nos torna especiais e só interpretáveis por especialistas. Pelo contrário: o Brasil é para amadores e principiantes. Porque pagar e corromper é muito fácil. O difícil é construir uma coletividade em que haja leis, institucionalidade. O difícil é ser moral. Ser imoral é que é para principiantes. A malandragem é uma conduta moral de uma criança de nove anos. O difícil é crescer. Governar pagando o cara para votar comigo é que é amador. O profissional é construir um discurso que convença, é falar com o outro”.

Este é um pequeno trecho de uma longa (e bela) entrevista que ele deu a Reinaldo Azevedo, na revista Primeira Leitura, em 2006, quando Contardo voltou a morar no Brasil depois de uma década nos Estados Unidos.

Desenhando: se fazemos negociatas, fazemos acordos privados. Não fazemos políticas públicas. Isso é ser principiante. É estar de fato antes do princípio da coisa pública, da república. Mesmo de civilização humana —que parte da premissa de um conceito de coletivo, do comum a todos. É ser principiante ou mesmo pré-escolar na história psicopolítica de um país. Eu seria menos generosa no diagnóstico: estamos na faixa etária dos dois anos no tocante à relação com o outro, o limite e o espaço coletivo.

O poder no Brasil (no mundo neoliberal?) é invariavelmente um balcão de negócios. Afinal, eu tenho coisa para vender e você quer comprar. Ou vice-versa. A gente aqui faz qualquer negócio. Parecer? Lei? Cargo? Diretriz? Objetos? Dejetos? O que você quiser, o que for bom para mim, para o meu grupinho. Vidas, histórias, subjetividades? Valendo um dólar ou menos, o que importa é a “janela de oportunidade” para o Eu.

E a lógica narcísica não para aí. Pois, diante de tudo isso, por que continuamos repetindo “o Brasil não é para principiantes”? Parece que nos apegamos ao gozo do “caos Brasil”. Nos lambuzamos com ele, nos afundamos nas ideias de que “esse país não presta, esse país não é sério, é uma zona, não tem jeito”. A excitação em torno do último absurdo do Planalto, do Congresso, da CPI, de fulano, beltrano. Seria uma defesa? Talvez só consigamos ler os jornais e encarar a realidade com o escudo protetor de nosso narcisismo que sim, precisaria ser muito descolado para dar conta de todo o caos, de todo esse horror cotidiano. E quase com orgulho disso. Uma forma curiosa e invertida de distinção.

Cá entre nós, é triste saber que Contardo voltou para morrer, 15 anos depois dessa entrevista, no mesmo país, ou quem sabe num país pior. Tão principiante. Tão primário.

contato@mariahomem.com

@maria.homem

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