Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

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Marilene Felinto

Indesejada das gentes

Quando a morte brutal do menino de 26 anos chegou, nada estava pronto

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A ciência é louca — no sentido de espantosa, porque meio sobrenatural, milagrosa. Por exemplo: fez chover no desértico Dubai, há duas semanas. A temperatura era, então, de 50 graus Celsius por lá. Drones injetaram descargas elétricas nas nuvens, e então a chuva caiu.

Na mesma semana, a sonda robótica InSight, da Nasa, captou tremores em Marte. Descobriu-se que o planeta vermelho é sísmico, sujeito a terremotos.

Marte tremeu. E talvez tenha tremido justamente no dia 21/07, quando, aqui na Terra humana, a ciência nem impediu nem explicou a morte brutal daquele menino de 26 anos. Tinha ares de menino e, para alguns de nós, ainda era assim.

Dessa vez, a morte veio como um raio de relâmpago que atravessou o corpo dele e nossas cabeças. Em termos reais, crus e duros: um infrator de trânsito atingiu de carro o menino na motocicleta: coisa de politraumatismo, polimetal, poliferro, menino estendido no deserto do asfalto.

E não houve ciência, nem sortilégio, nem drone, nem choque elétrico, nada que revertesse o silêncio dele que jazia ali, então, para sempre, na despedida. Deveria haver, nos velórios, nos enterros, nas vigílias pelos mortos, um espaço para a revolta, o protesto e o grito, caso alguém tivesse forças para isso.

Olha só: exigir, repreender, como quando o menino era criança teimosa nas férias, aqui em casa. Exigir severamente, rejeitar o silêncio fúnebre, o “para sempre” (pensei, em língua estrangeira, para não chamar muita atenção, enquanto velava o corpo): “Gabriel, get the fuck out of this fucking coffin!”: (“Levanta, po...*, dessa mer...* de caixão, Gabriel!). Levanta!

Mas não. Nada disso. Que o menino tenha desculpado esse nosso egoísmo, que tenha ido em paz! Era ao mesmo tempo filho, irmão, sobrinho (meu, por afinidade), neto, amigo, namorado... mas, sobretudo, senhor do próprio destino...

Ah, que o menino tenha desculpado nosso mandonismo adulto, nosso autoritarismo —afinal, quem disse que se deve viver para se ajustar, para se adequar e obedecer a este mundo cruel? Quem disse? Uma astróloga me contou que mortes nessa faixa etária, dos 26 aos 29, têm desígnios das galáxias, das provações do pesado “retorno de Saturno”. Uns sobrevivem, outros não.

As últimas palavras do menino para mim foram sobre a morte da minha cachorra, em 21/06 último, exato um mês antes da morte dele. Da pastora alemã também falei aqui, nessa espécie de obituário que, sem eu querer, ocupa agora pela segunda vez meu espaço nesta página.

Eis suas últimas palavras, via mensagens de WhatsApp:

[21/6 13:16] Gabriel Vicentin: Nossa... Sinto muito, que notícia mais triste...
[21/6 13:16] Gabriel Vicentin: Mas fizeram tudo o que podiam... Ela foi muito amada e amparada por vocês
[21/6 13:16] Gabriel Vicentin: Agora ela descansou...

A ciência é louca! Talvez cientistas mandem robôs para outros planetas porque, no fundo, no fundo, procuram uma explicação para a vida e para a morte. Mas só encontram tremores. A ciência não impediu (com seu milagre, seu sortilégio) a sequência fatal: a queda do menino, a inconsciência e (logo depois?) a ex-consciência. Não encontrou o núcleo, o centro da passagem da consciência para a ex-consciência. Para onde foi a ex-consciência desse menino, afinal?

Marte tremeu mais de 700 vezes (certamente em 21/07/2021), de modo tal que os cientistas puderam entender melhor a anatomia do planeta. Os geofísicos planetários, que estudam o “interior profundo” de Marte, confirmaram que o centro do planeta vermelho é “derretido” (o núcleo de metal líquido). “Derretido”? Mas e quanto ao derretimento de nosso profundo interior humano nesta hora? Ficamos apenas com a nebulosa dúvida astrológica, numerológica (o dia 21), com a precisão imprecisa da poesia

Aliás, ao contrário do que diz o poeta, “quando a indesejada das gentes” (a “iniludível” morte) chegou para o menino, nada estava pronto: não havia mesa posta, não havia casa limpa, e nada estava no lugar. Talvez apenas o campo estivesse lavrado, porque a paineira deu painas pela primeira vez aqui na casa, depois de tantos anos, tantos quanto os 26 anos da vida dele —ironia a grama toda forrada da penugem branca da paina! Um leito macio para aquele menino que partia. Nada estava pronto: o menino, para alguns de nós, não estava pronto! Ou estava, e era senhor de seu próprio destino. “Descansou.” A poesia é esta “Consoada”:

“Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com /os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar”.
(Manuel Bandeira, “Libertinagem”, 1930).

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