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Andre Pagliarini

Livro defende que impeachment de Dilma foi machista e atingiu mulheres na política

Pesquisadores analisam a questão de gênero na derrubada da ex-presidente, que completa 5 anos

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Dilma Rousseff caminha em amplo salão com cortina branca ao fundo

Dilma Rousseff em cena do documentário ‘Alvorada’, de Anna Muylaert e Lô Politi, filmado entre julho e setembro de 2016 Divulgação

Andre Pagliarini

Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)

[RESUMO] Livro lançado nos EUA aponta que o machismo teve papel destacado no processo de impeachment de Dilma Rousseff, que completa cinco anos. Para os autores da obra, a ascensão da petista à Presidência suscitou uma reação desvairada que buscava não apenas tirá-la do poder, mas também enfraquecer a participação de mulheres na política, o que contribuiu para o retrocesso do combate às desigualdades nos governos seguintes.

Em 1992, Hillary Clinton defendeu sua atuação profissional sem papas na língua. “Suponho que eu poderia ter ficado em casa fazendo biscoitos e tomando chá, mas decidi me dedicar à minha profissão, na qual me iniciei antes do meu marido entrar na vida pública”, disse a futura primeira-dama.

Bill Clinton, seu marido, disputava as prévias do Partido Democrata e foi criticado por supostamente ter favorecido o escritório de advocacia da esposa enquanto era governador do estado de Arkansas. Hillary via um viés machista no ataque e defendeu o papel das mulheres no mercado de trabalho. Pelo menos, essa foi a sua intenção.

Muitos, contudo, viram os comentários como um insulto contra as mulheres que não trabalham fora de casa, como se um papel doméstico fosse trivial. A frase dos biscoitos viria a assombrar Hillary vez por outra em sua carreira política. Eleita senadora pelo estado de Nova York em 2000, disputou as prévias democratas em 2008, perdendo para Barack Obama, e a Presidência dos EUA em 2016, quando foi derrotada por Donald Trump.

Lamentando as dificuldades nessa última disputa, Hillary reconheceu não ser tão hábil na política quanto o seu marido, considerado um dos presidentes mais carismáticos do século 20. No Brasil, em 2016, a então presidenta Dilma Rousseff disse algo similar ao se comparar a Lula, afirmando que ele sim era “um grande político”, e não ela.

Como Hillary, seu ponto forte seria fazer as coisas acontecerem, muitas vezes com tremendos esforços nos bastidores. A ausência dos dons carismáticos do seu antecessor certamente dificultava ainda mais a sua atuação como a primeira mulher eleita para o cargo máximo do Executivo federal brasileiro.

Assim, Dilma se identificava com Hillary durante o processo surreal de impeachment que sofreu. Ambas sentiram o peso das expectativas diferenciadas para mulheres no mundo político. Não é fácil para ninguém ser eleito para algum cargo público, mas talvez seja especialmente difícil para mulheres.

Acontece que, ao contrário de Hillary, Dilma ganhou a Presidência duas vezes, mostrando durante os seus anos de governo o quanto “a relação entre ter uma mulher presidente e o empoderamento de mulheres é complicado e, às vezes, contraintuitivo”.

A constatação é de Pedro A. G. dos Santos e Farida Jalalzai, que lançaram em fevereiro nos EUA o livro “Women’s Empowerment and Disempowerment in Brazil: The Rise and Fall of President Dilma Rousseff” (empoderamento e desempoderamento das mulheres no Brasil: ascensão e queda da presidente Dilma Rousseff).

Santos estava no Brasil fazendo pesquisa para o seu doutorado durante a campanha presidencial de 2010, enquanto Jalalzai já vinha estudando as experiências de mulheres em cargos executivos. Juntos, eles combinam uma compreensão da burocracia institucional do governo brasileiro com uma perspectiva nítida das relações de gênero no âmbito político.

Os autores examinam duas questões principais no livro. Primeiro, como Dilma usou o seu poder para fortalecer o papel das mulheres na política brasileira. Segundo, como a questão de gênero impactou o seu governo e o processo de impeachment que a derrubou.

Acabam por concluir que o empoderamento das mulheres —o processo de fornecer a elas mais poder decisório sobre políticas públicas— oferece benefícios para a sociedade como um todo. “Embora alguns possam estar convencidos de que empoderar as mulheres é um jogo de soma zero,” sustentam os autores, “sabemos que empoderar as mulheres empodera todos nós”.

Uma lição infeliz que sobressai do estudo, contudo, é a fragilidade de avanços na área de representatividade de gênero na política.

Existem ao menos três maneiras para julgar até que ponto uma mulher na Presidência serve para empoderar as mulheres em geral na política, de acordo com os autores. A primeira e mais direta passa por uma análise de suas nomeações. Como reparam Santos e Jalalzai, “os chefes do Executivo possuem maior capacidade que os legisladores e membros individuais do gabinete para influenciar a composição de gênero das instituições políticas e as prioridades políticas”.

Convém analisar quantas mulheres uma presidenta coloca em sua equipe. A chilena Michelle Bachelet, por exemplo, montou um governo em que metade dos ministérios era comandada por mulheres. No início do primeiro mandato de Dilma, 9 das 37 pastas foram para mulheres, um número que foi aumentando ao longo de sua gestão. Ao final de seu governo, Dilma havia nomeado 18 mulheres ministras, o maior número já registrado no país.

Segundo Maria do Socorro Braga, professora de sistemas democráticos e teoria política democrática da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), Dilma “queria que houvesse paridade de ministros, metade mulher e metade homem, mas por conta de brigas internas do PT não foi assim”. De toda forma, prossegue ela, “isso foi uma diferença brutal, porque nunca tivemos um governo com um número tão grande de mulheres representadas, e isso estimula várias mulheres a participarem da política”.

Santos e Jalalzai sustentam que Dilma tanto insistiu em empoderar mulheres que acabou sacrificando possíveis apoios políticos. Nomeou dez mulheres sem filiação partidária, oito do PT e apenas uma de outro partido (Kátia Abreu, então no PMDB, hoje no Progressistas) para chefiar ministérios em seu governo. Os autores especulam que, dada a percepção de que mulheres são menos suscetíveis à corrupção que homens, aumentar o número delas no governo à medida que escândalos de corrupção surgissem tinha uma certa lógica política.

Santos e Jalalzai ressaltam também a complexidade do sistema de coalizões que sustentam o presidencialismo brasileiro, notando que, nos governos Lula e Dilma, mulheres foram nomeadas quase que exclusivamente para ministérios controlados pelo PT depois de negociações com partidos de sustentação do governo ou para ministérios bem próximos ao presidente (Secretaria de Relações Institucionais e Casa Civil, por exemplo).

Se a presidenta priorizasse menos a questão de gênero, poderia ter distribuído esses cargos entre os fisiologistas de plantão em troca de um aval político, que acabou se dissipando. Os resultados para o seu governo foram catastróficos, mas não parece apropriado culpá-la inteiramente por isso.

A segunda maneira de ver o quanto uma presidenta agiu para empoderar mulheres passa por analisar as suas políticas públicas. Nesse sentido, Dilma agiu para expandir e fortalecer várias políticas estabelecidas no governo Lula para explicitamente favorecer mulheres, especialmente mães e trabalhadoras de baixa renda. O livro é repleto de considerações históricas pertinentes para entender esses pontos e os devaneios autoritários dos últimos anos.

Santos e Jalalzai examinam a história da Lei Maria da Penha, de 2006, a PEC das domésticas, de 2013, e a cota eleitoral de gênero implantada em 1995 e revisada em 2009 e 2017, entre outras medidas legislativas, para mostrar a importância de ter uma governante preocupada com essas pautas.

A terceira forma de julgar o empoderamento de mulheres com uma presidenta no cargo está no âmbito simbólico. Por exemplo, Cristina Kirchner, que presidiu a Argentina de 2007 a 2015, enfatizou o combate à violência contra a mulher e a área da saúde feminina, ligando as prioridades do Estado às perspectivas das mulheres.

Dilma também se tornou, pelo menos em um dado momento, um emblema de empoderamento feminino. Especialistas ouvidas pela BBC Brasil em 2016 apontaram avanços na representatividade política, na independência financeira da mulher e no enfrentamento da violência doméstica, mas criticaram a falta de empenho em torno da diversidade sexual e dos direitos reprodutivos.

Na ocasião, a antropóloga Debora Diniz disse que “uma das grandes tristezas do governo Dilma foi ver que a discussão sobre os direitos reprodutivos das mulheres não avançou em nada; pelo contrário, o tema foi totalmente silenciado”.

Santos e Jalalzai relembram a criação da Rede Cegonha em 2011, um programa que buscava garantir atendimento às mulheres, especialmente as de baixa renda em áreas rurais, desde a confirmação da gravidez até os dois primeiros anos de vida dos bebês. Críticas feministas na época consideraram o programa um retrocesso, alegando que havia décadas militantes buscavam expandir as demandas na área de saúde para além de questões maternais.

Sob esse ponto de vista, Dilma estaria enfatizando o papel das mulheres como mães, quando o rol de problemas a serem atendidos era bem maior. A questão do simbolismo —quais prioridades uma mulher na Presidência colocaria na mesa— se impunha desde o início do governo.

Eleita em 2010 com 56% dos votos válidos no segundo turno, Dilma não mudou, pelo mero fato da sua ascensão, a estrutura básica da política brasileira. Uma mentalidade tacanha sobreviveu.

Assim como Obama nos Estados Unidos lidou com uma reação racista desvairada na base social do Partido Republicano, Dilma suscitou uma reação misógina desvairada na base da sua oposição —para não dizer na grande mídia brasileira. O impeachment mostra o perigo que parcelas da sociedade historicamente excluídas da política enfrentam ao ingressar na arena eleitoral.

O contexto de hostilidade ideológica que impulsionou a queda de Dilma e que continua assombrando a sociedade brasileira faz com que “as políticas e iniciativas que buscam empoderar as mulheres sejam ignoradas”. Os autores acrescentam que “as prioridades dos governos desde o impeachment buscam minar os objetivos de políticas previamente estabelecidas, e os debates no Congresso indicam que a formulação de políticas relacionadas às mulheres provavelmente não será uma prioridade nos próximos anos”.

O argumento não é que só uma mulher na Presidência pode fazer avançar pautas caras às mulheres brasileiras, mas que a ausência de perspectivas femininas no alto escalão tende a rebaixar essas pautas urgentes para o segundo plano.

A derrubada indevida de Dilma pôs fim ao empoderamento das mulheres nos mais importantes cargos políticos. Os autores passam um capítulo inteiro do livro analisando o teor machista de vários ataques contra a ex-presidenta durante o processo de impeachment. Analisam minuciosamente também as falas dos deputados naquele espetáculo vergonhoso na Câmara, há cinco anos, em que o hoje presidente Jair Bolsonaro, ao proferir seu voto a favor do afastamento de Dilma, homenageou o primeiro militar reconhecido pela Justiça brasileira como torturador, o coronel Brilhante Ustra.

O processo de impeachment, para os autores, virou fundamentalmente uma disputa por espaço. “Embora a misoginia não seja a única razão pela qual a presidenta Rousseff foi derrubada, foi um elemento importante na tentativa de desempoderar a presidenta (colocando-a em seu lugar) e, consequentemente, enfraquecer as mulheres que buscavam entrar nos espaços masculinos na sociedade brasileira,” sustentam Santos e Jalalzai.

A revista Marie Claire chamou de “fato grave” o governo de Michel Temer não ter nenhuma mulher ministra em seu início. Uma gestão interina de legitimidade duvidosa não poderia ter escolhido uma maneira mais clara para assinalar o retrocesso no qual o país mergulhava. Temer foi tão criticado pelo machismo flagrante de seu governo que Bolsonaro, depois de eleito, fez questão de não repetir o erro. As ministras Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) e Tereza Cristina (Agricultura, Pecuária e Abastecimento) são fruto dessa consciência.

Em 2019, na média, a taxa internacional dos ministérios ocupados por mulheres era de 20,7%. O índice no governo Bolsonaro era de apenas 9%, atrás de Sudão, Camboja, Filipinas, Laos, Síria, Argélia, Gabão e Afeganistão.

O patamar pífio mostra que a eleição de uma presidenta não teve impacto duradouro no empoderamento institucional das mulheres. Pelo contrário, o escrutínio machista que Dilma sofreu pode até ter dificultado a atuação de mulheres no nível mais alto da política brasileira, lamentam Santos e Jalalzai.

Segundo eles, a experiência de Dilma mostra que conquistar o poder é apenas um dos grandes entraves que mulheres enfrentam ao ingressar na política. Mantê-lo é um desafio por si só. “Embora obviamente um grande baque, o impeachment não apagou a importância de ter elegido a primeira mulher presidente”, argumentam os autores. “Além disso, o tom misógino do processo de impeachment, o desmantelamento da máquina executiva que havia empoderado as mulheres na última década, o assassinato de Marielle Franco e a ascensão de Jair Bolsonaro deixaram absolutamente claro que mais mulheres precisam se engajar no processo político.”

Essa constatação obviamente desconsidera a atuação de mulheres na extrema direita brasileira nos últimos anos, figuras como Janaina Paschoal, Joice Hasselmann e Carla Zambelli, entre outras. Existe uma certa ironia histórica, observam os autores: essas mulheres tão proeminentes talvez não teriam conseguido tanto espaço em seu partido ultraconservador, o PSL, sem o grande passo de representatividade dado pela presidenta que tanto desprezam.

Em 2018, quando o percentual de mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados cresceu de 10% para 15%, PT e PSDB tiveram o maior número de candidatas eleitas (dez cada sigla), seguidos pelo PSL (nove). Mesmo que agora eclipsada em termos políticos, a ex-presidenta segue como referência simbólica para uma nova geração de mulheres na esquerda, como Talíria Petrone, do PSOL, e Natália Bonavides, do PT.

O Brasil está passando por um momento democrático repleto de incertezas. Não surpreende que mulheres estejam na linha de frente dos grandes embates políticos dos últimos anos. Após a derrocada do governo Dilma, houve o assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco, em 2018, um caso que segue vergonhosamente sem resolução. Depois vieram as manifestações maciças organizadas em torno do #EleNão, uma rejeição pungente da candidatura extremista de Bolsonaro liderada por mulheres cisgênero e trans, brancas, negras e indígenas.

Segundo Santos e Jalalzai, a experiência traumática da ruptura que pôs fim ao governo Dilma nutriu uma sensação de indignação de gênero que talvez acabe sendo benéfica para a democracia brasileira. “Os ataques misóginos que Dilma sofreu inspiraram mulheres em diversas comunidades feministas a trabalharem juntas e se manifestarem”, tanto durante o processo de impeachment quanto nos governos machistas que a sucederam.

“Assim", os autores concluem, “um dos momentos mais sombrios do Brasil para os movimentos femininos pode ser transformado em um momento que empodera as mulheres”.

O Brasil vive uma reação à onda progressista dos últimos 20 anos que visava, entre outros aspectos, o empoderamento feminino como forma de atenuar as desigualdades estruturais da sociedade brasileira. Talvez seja necessário dobrar a aposta nas mulheres, especialmente naquelas mais violentamente excluídas do poder decisório, como lideranças capazes de nos conduzir para longe do abismo.

Women’s Empowerment and Disempowerment in Brazil: The Rise and Fall of President Dilma Rousseff

  • Autor Pedro A. G. dos Santos and Farida Jalalzai
  • Editora Temple University Press
  • Link: https://bit.ly/3t4DF5T
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