Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge
Descrição de chapéu

Todos deveriam ter o direito de morrer em paz (e quando bem entenderem)

David Goodall, 104, durante entrevista em Basel, na Suíça
David Goodall, 104, durante entrevista em Basel, na Suíça - Stefan Wermuth/ Reuters

“Eu não estou feliz, eu quero morrer.” A declaração é do cientista inglês David Goodall, que decidiu, aos 104 anos, por um suicídio assistido para abreviar sua existência. Apesar de não deixar de achar triste pensar na morte de alguém, li a notícia com certo conforto. Com o sentimento de que a decisão sobre a vida deveria ser individual e que não pudesse sofrer interferências de terceiros e muito menos do Estado.

Gostaria de poder escolher se quero viver mais ou se já deu para mim. Imagino que haja milhares de pessoas que talvez não tenham encontrado um propósito para suas vidas, estão doentes ou apenas cansadas. Sei que seria necessário maturidade para tais decisões e nossa sociedade é tudo, menos madura. Mas de quanto sofrimento seria poupado alguém que pudesse ter tal poder sem que, ao optar por dar um fim aos seus dias, não tivesse ainda que enfrentar o julgamento dos que ficam?

Depressivo. Louco. Fraco. Suicida. Não, apenas alguém que resolveu se retirar enquanto tudo que lhe resta seja dignidade.

Mas, no Brasil, a gente nem morrer pode quando quer. Não se permite aqui eutanásia ou suicídio assistido. As pessoas são obrigadas a viver mesmo que não queiram. Enquanto isso, há países que já tratam do assunto sem a culpa cristã-moralista que ronda a existência de muitos. Aqueles que acham suicídio o pior dos pecados e, ao mesmo tempo, desejam que David Goodall vá direto para o inferno por tamanha ousadia contra Deus.

Inferno mesmo é viver num país com tanta gente ignorante.

Cientista que é, improvável que Goodall espere qualquer recepção calorosa (não resisti ao trocadilho). Céu ou inferno não devem estar em seus planos, assim como não estão nos meus.

Parece perfeitamente normal que, em alguns casos, alguém não queira mais viver. Doenças incuráveis, degenerativas, deficiências, sofrimentos físicos ou psicológicos, para falar apenas do básico. O que dizer de gente acima de 70, 80, 100 anos? Ainda que as pessoas pareçam querer viver cada vez mais e a barreira da longevidade venha sendo rompida a cada ano, nem todo mundo talvez tenha a disposição de ficar décadas e décadas por aqui até que a vida acabe por nos definhar.

Enquanto escrevo e penso com carinho no cientista, lembro que vivemos num país em que as pessoas ainda têm o Estado como babá em questões ainda mais simples, que deveriam ser decisões particulares. É do Estado a prerrogativa de legislar sobre o que deveria ser arbítrio do indivíduo, como a escolha de usar drogas, de decidir se quer ou não levar uma gravidez adiante ou de casar de papel passado com alguém do mesmo sexo.

E ao ver a ira do público por causa de um beijo entre dois homens numa novela é desesperador constatar que o povo quer mesmo que suas vidas continuem sendo ditadas por uma supernanny reaça, o Estado brasileiro. Não podemos sequer viver com liberdade, pedir para morrer quando nos convém, nem pensar.

A decisão de Goodall é corajosa. E que bom que ele tenha encontrado os meios de se despedir do mundo quando acha que chegou a hora. No caso do cientista, foi por causa das restrições de mobilidade que enfrenta devido à idade avançada. Mas poderia ser porque está doente, triste ou apenas farto da vida. E, numa hora dessas, o que alguém precisa não é julgamento, é apenas compreensão.

Vá em paz, David.

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