Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

Por onde anda Deus quando um padre estupra uma criança?

A igreja está preocupada em evitar que o número dos fiéis continue a diminuir

O mais recente escândalo de abuso sexual dentro da Igreja Católica tem pelo menos mil vítimas e envolve cerca de 300 padres da diocese da Pensilvânia, nos Estados Unidos. O relato dos casos é de embrulhar o estômago dos mais fortes. Na Argentina, o caso mais estarrecedor é de estupro e espancamento de crianças surdas, cometidos por padres nas cidades de La Plata e Mendoza. Na Austrália, perto de 4.500 denúncias foram feitas às autoridades eclesiásticas e uma investigação descobriu que 7% dos sacerdotes foram acusados de abuso contra menores. O Ministério Público brasileiro investiga casos denunciados na Paraíba. Tudo em sigilo.

Décadas de denúncias acobertadas. Só no caso da Pensilvânia, as investigações mostram que o Vaticano sabia de alguns casos desde a década de 1960. No mundo todo, padres, bispos, cardeais eram afastados das paróquias e, pasme, transferidos para outras onde cometiam de novo, de novo e de novo monstruosidades contra indefesos. Eram promovidos ou, no máximo, transferidos para Roma, numa aposentadoria compulsória, como essas que acontecem quando gente do Judiciário brasileiro faz merda.

Décadas e décadas de denúncias e de negação. Um papa depois do outro cuidou de salvar a reputação da instituição às custas de milhares de novas vítimas. Nem Francisco se salva dessa lama em que a Igreja Católica afunda a cada dia. Apesar de ter pedido tolerância zero, teve uma das atitudes que mostram a serviço de quem ele está ao pedir provas das vítimas chilenas, quando esteve no país no ano passado, e foi cobrado por causa dos escândalos envolvendo um padre e um bispo. Não foi o único caso em que se colocou ao lado dos agressores.

Ontem, o Vaticano emitiu um comunicado, assinado pelo papa em que ele reconhece que o abuso foi “por muito tempo ignorado, mantido em silêncio” e promete acabar com o acobertamento dos casos. Ufa, fico mais tranquila agora que a mais alta autoridade da Igreja disse que não vão mais ignorar o comportamento predatório de seus representantes.

Há duas questões importantes. Primeiro, a Igreja não tem como fiscalizar a conduta criminosa de seus sacerdotes espalhados pelo mundo. Segundo, a mudança de postura da instituição não foi um milagre causado pela repentina conscientização de que a igreja deveria ser um dos últimos lugares do mundo em que crianças fiquem à mercê de pedófilos. A Igreja não está preocupada em proteger gente inocente, apenas em evitar que o número dos fiéis continue a diminuir, o que já acontece naturalmente mesmo sem escândalos. Para o marketing do Vaticano, padre que come criancinha é um péssimo negócio.

É revoltante, não é mesmo? Mesmo assim, não temos notícias de manifestações nas portas das igrejas em lugar algum do mundo, de revolta por parte dos fiéis na praça de São Pedro, em Roma, durante uma daquelas missas-espetáculo, protagonizadas pelo papa, onde se fala sobre um mundo com mais amor e com menos violência.

Na ótica dos defensores da família e dos bons costumes, pedofilia parece ser algo inaceitável, passível de protesto e agressão, apenas quando retratada num quadro, como aconteceu na exposição "Queermuseu", em Porto Alegre, fechada por causa da pressão pública, mas reaberta no último fim de semana, no Rio. Ou quando a performance de um artista dentro de um museu cheio de gente é acusada de abuso sexual e de pornografia infantil. Daí não pode. Não pode mesmo, mas quando a acusação tem fundamento, e é bom lembrar que o Ministério Público pediu arquivamento da investigação sobre possível crime no vídeo em que uma criança interage com um artista nu. Não era crime, não era pedofilia, não era pornografia. Talvez não tenha sido adequado, mas esse é outro problema.

Já os casos de abuso sexual dentro da Igreja não deixam dúvidas. São crimes. Cometidos justamente por aqueles em quem famílias depositaram tanta confiança a ponto de tornar crianças e adolescentes alvos muito vulneráveis de predadores vestidos de homens santos. São curiosas a indignação seletiva e a passividade dos fiéis, principalmente os mais velhos, que continuam tão crentes e devotos diante de milhares e milhares de casos de assédio cometidos bem ali debaixo das barbas do criador. Sério, cadê a indignação, a gritaria e os protestos contra essas atrocidades? Tão importante quanto, por onde anda Deus na hora em que um padre estupra uma criança de seis anos?

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