Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

Não fui criada para ir ao supermercado

Nas horas vagas, tenho três empregos; mas o importante é que eu vá ao supermercado

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Já fui desautorizada a falar sobre maternidade porque não sou mãe. Não posso falar sobre racismo porque sou branca. Nem pensar em escrever sobre machismo porque sou classe média, privilegiada, então, tem outras mulheres que sofrem mais. Já tentaram me calar de todas as maneiras, sem sucesso. Mas não deixa de ser curioso o último argumento para desqualificar minhas opiniões. Segundo uma leitora, elas não merecem atenção porque “só vou ao supermercado para comprar vinho”.

É verdade. Raramente vou ao supermercado para abastecer a casa com os itens da sobrevivência básica. Um acordo informal se estabeleceu no meu casamento desde os seus primórdios. Algo que, inconscientemente, me mantem apaixonada pelo meu parceiro, muito mais do que se ele me trouxesse flores todos os dias. Suspiro quando ele entra em casa com aquelas sacolinhas, mais ainda quando se lembra de levar a ecobag e mostra que se importa não só com a minha fome, mas com o planeta. Já me peguei observando com admiração a destreza com que ele arruma os produtos na despensa ou as hortaliças no gavetão da geladeira. Que homem. 

Protesto registrado no documentário '#PrimaveradasMulheres', de Antonia Pellegrino e Isabel Nascimento e Silva
Protesto registrado no documentário '#PrimaveradasMulheres', de Antonia Pellegrino e Isabel Nascimento e Silva - Divulgação

Cada um tem lá seu check list mental para decidir se encontrou uma pessoa para dividir a vida e as tarefas domésticas. Foi sorte demais topar com alguém que se incumbiu dessa tarefa e, assim, me ajudou a não quebrar uma tradição, digamos, familiar. Minha mãe não vai ao supermercado. Minha avó não deve saber nem onde eles ficam. Por que teria eu que mudar um jogo que vem dando certo?

Meu avô livrou minha avó desse tormento por mimo. Meu pai acabou assumindo a tarefa porque minha progenitora gastava sempre o dobro com a mesma lista. Virou uma convenção. Mas porque não me encarrego da feira, do açougue e da padaria, minhas opiniões não prestam, segundo a leitora. 

A furadeira e a caixa de ferramentas têm o meu nome. Sou eu quem troca as lâmpadas quando queimam, desentupo a privada, penduro os quadros na parece, cuido da horta, dos lençóis para que estejam limpinhos, as toalhas fofinhas, as louças sem lascas, lavo a roupa e sei onde está cada cueca dessa casa. E nas horas vagas, tenho três empregos. Mas o importante é que eu vá ao supermercado. 

Sexta, numa dessas emergências da vida, coube a mim a aventura de explorar as gôndolas de lustra móveis e de desengordurante sem cloro, para que a faxineira fosse abastecida. Sim, conto com os serviços de uma auxiliar uma vez por semana. Agora, devo ficar encrencada de vez porque o mundo vai descobrir que não sou eu quem lava as privadas de casa. Pois bem, me encantei ao saber que tem amaciante “com tratamento intensivo detox para as roupas” e não hesitei em ceder aos apelos do marketing, achando que iria abafar com um produtinho tão descolado que custa muito mais caro porque me engana que eu gosto. 

Meu marido, que não acredita em suco, comida, pílula, nada com a promessa detox, só levantou a sobrancelha e disse que é melhor mesmo que eu continue a comprar apenas os vinhos e a dar opinião sobre tudo o que eu quiser. Estou proibida de ir ao supermercado. Que homem, Brasil. 

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