Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mariliz Pereira Jorge
Descrição de chapéu Alalaô

Não terá Carnaval, mas terá

O dilema é ser socialmente consciente ou egoísta

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Eu deveria estar de ressaca agora. Sexta-feira de Carnaval eu já deveria ter queimado a largada no Baile do Sarongue. Teria purpurina dentro do umbigo, uma garrafa de Pedialyte ao alcance das mãos, ar-condicionado na marca dos 21 graus. Lá pelas 14h, pediria um X-bacon-salada pelo delivery, uma olhadinha nas redes sociais para checar algum episódio "se beber, não poste", mais uma dormidinha, a tempo de começar tudo de novo.

Todo mundo sabe que não terá Carnaval, mas terá. A festa oficial foi transferida para abril, mas extracalendário há dezenas de eventos agendados, com convite esgotados. Há também anúncios de vários blocos de rua não tão clandestinos. Até ontem, mais conhecido como antes da pandemia, os cortejos piratas, aqueles sem autorização para sair, eram tratados na surdina. Hoje, tem post nas redes sociais, com lugar, hora e dress code. Tem programação até à luz do dia, o que desafia a fiscalização da prefeitura e a do bloco dos contra a folia. Não a pagã, mas a pandêmica.

Não terá Carnaval, mas terá.

Bloco Pagu, no centro de São Paulo, no Carnaval de 2020 - Danilo Verpa - 25.fev.20/Folhapress

A previsão é de sol, de calor infernal, de gente enchendo a cara de cerveja e de drogas ilícitas, meio peladas, todas suadas, se esfregando e se beijando, nas ruas ou nos camarotes. Credo, que delícia.

Na semana passada, repeti o ritual de todo mês de fevereiro. Desci todo meu arsenal carnavalesco. "Descer" as fantasias é vocabulário de iniciados. Elas passam o ano inteiro numa parte menos nobre do guarda-roupa. Descansam o sono dos justos, dos felizes, dos realizados. Não deixa de ser irônico que a pandemia tenha aprisionado no maleiro nossos sonhos de viagens e de carnaval. Malas e fantasias lado a lado, dividindo a angústia do isolamento e do abandono.

Na esperança de que 2022 fosse um Carnaval sem fim, comprei ombreiras de paetê, macacão de Mulher-Maravilha, máscara de luta livre. Passei algumas horas brincando em frente ao espelho, fazendo planos para todos os dias. A pandemia não foi embora, juntou-se a ela uma guerra que a maioria das pessoas nem entende. O número de mortes da Covid continua escandaloso e agora divide o placar com as vítimas da insanidade de um único homem.

De um lado vejo fotos de amigos em festas pré-carnavalescas. Estive numa delas. Todos ficaram meses isolados, respeitaram distanciamento, tomaram todas as doses possíveis de vacina, choraram mortos desconhecidos. São pessoas más? É só gente exausta de desgraça, com a cabeça em frangalhos, tentando se alienar da realidade.

Do outro, o coro contra a bagunça que pode, claro, piorar a pandemia. Como podem se divertir, beber e dançar com as notícias de uma possível terceira guerra? Eu também me pergunto como é possível, ao mesmo tempo que fecho os olhos e me imagino abraçada com gente que nem conheço.

Não terá Carnaval, mas terá. O dilema é ser socialmente consciente ou egoísta, meio filho da puta, mas não ficar ainda mais louco. Vou abrir uma cerveja para pensar melhor.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.