Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Três mulheres e um papagaio

Figuras femininas da França e do Brasil, no século 19 e no presente

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A primeira mulher, Annie Ernaux, é uma grande escritora, quiçá a mais renomada na França hoje. Sua obra-prima é “Os Anos” (Três Estrelas, 228 págs.). Só o tempo, que sói sepultar lançamentos retumbantes, dirá se o romance, publicado em 2008, é mesmo um marco da arte literária.

Mas o que já dá para dizer dele hoje é muito: nenhum romance francês captou com tal força o fluxo do tempo, da Liberação ao 11 de Setembro. Na terra estéril do romance, Annie Ernaux fez brotar uma forma frondosa, a autobiografia impessoal, em cuja sombra há milhões de mulheres.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

No começo de cada capítulo, a narradora descreve determinada figura feminina numa fotografia. Essas mulheres —a bebê, a menina, a adolescente, a moça recém-casada, a mãe, a divorciada madura, a avó— são a narradora, que por sua vez encarna todas as francesas de 1944 a 2011.

O pretérito imperfeito de “Os Anos” devora o presente até ele sumir e emudecer para sempre: “Tudo vai se apagar em um segundo. O vocabulário acumulado, do berço ao leito final, será eliminado. Restará somente o silêncio, sem palavra alguma para nomeá-lo”.

Todas as imagens serão calcinadas pelo tempo. No máximo, nas conversas em volta de uma mesa de festa, pode ser que alguém se lembre de uma parenta morta: “Seremos apenas um nome, cujo rosto vai se desvanecer até desaparecer na massa anônima de uma geração distante”.

Nada restará de ninguém. Mas até lá, até o fim, até o nada, dará para compartilhar gestos, cidades, sentimentos, raciocínios, lágrimas, o mundo. Será possível sentir o que é comum a todos, a solidão. Viver em conjunto o isolamento individual e social só é possível em literatura, em “Os Anos”.

A segunda mulher, Josefa Carneiro de Mendonça, nasceu em Vila de Santa Luzia de Goiás, em 1780, e morreu em Petrópolis, em 1855. Líder de uma conspiração liberal, ela é a protagonista de “Dona Josefa”, o segundo romance de Ana Luisa Escorel (Ouro sobre Azul, 190 págs.).

Não se sabe nada de Josefa, afora o que consta dos autos do processo contra os participantes da Revolução Liberal de 1842, da qual ela foi a chefe inconteste. Comandou-a, mas não foi condenada —sua culpa foi astuciosamente transferida para um filho que se escafedeu.

Ana Luisa Escorel explica o motivo e o alcance da artimanha: “Como acontecia e continua acontecendo no Brasil em praticamente todos os arranjos ajustados entre os membros das classes dominantes”, Josefa se livrou “de qualquer pena graças à anistia concedida por dom Pedro 2º”.

O romance é uma fantasia com fundo histórico, “uma fenda por onde saíam pedaços do tempo vivido”. Numa linguagem cerrada e às vezes arcaizante, “Dona Josefa” imagina a miséria efetiva e afetiva, política e espiritual, familiar e social de uma mandona do século 19.

Como em “Os Anos”, a imaginação da autora parece ter sido acordada por uma imagem —a foto estampada na capa do livro— que mostra a sisuda Josefa. Muita coisa acontece no romance, mas tudo é raso, medíocre e sem energia no Brasil de então, uma bruta roça.

Se o estilo de Annie Ernaux aspira ao verso livre, o de Ana Luisa Escorel se aferra ao solo árduo da prosa —pois que a elite casca grossa que percorre “Josefa” é corpulenta e agressiva. Há dramas cavos, expectativas emparedadas, pouco amor, libido quase zero. O convívio é áspero e a gente incivil se acomoda à força.

Em que pese o recurso a fontes primárias e relatos de viajantes, a escritora fala da burguesia de hoje e de seus subalternos. No seu mundo tacanho não há progresso, só cobiça e pasmaceira. O relato cativa porque o entendimento das personagens transcende a torpeza geral.

A terceira mulher, Félicité, é a protagonista inesquecível de “Um Coração Simples”, o primeiro dos “Três Contos” de Flaubert. Andava sumida desde que a Cosac Naify afundou, e volta agora na extraordinária tradução de Milton Hatoum e Samuel Titan Jr. (ed. 34, 143 págs.).

Enquanto a tradução de “Os Anos” deixa a desejar —por ser prolixa a ponto de acrescentar palavras ao original— a de “Três Contos” incorpora ao português a sintaxe acumulativa, o opulento vocabulário e o emprego revolucionário do passado perfeito.

A busca da palavra justa está a serviço do retrato que o conto faz de Félicité, a criada de coração simples. Ela perde todos os seus afetos, até o papagaio Lulu, que empalha e põe num altar. Flaubert conta a sua vida com empatia, sem apelar para o escracho ou a ironia. Com grande arte, revela o que é a ternura.

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