Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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O embaraço de estar vivo e só

W. S. Graham, um grande poeta do pequeno e do pouco

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Um poema curto de William Sydney Graham começa com quatro linhas em branco, para que o leitor as preencha. Aí ele escreve o seguinte:

“Voltarei num instante
Para ver o que você fez.
Tente. Tente.
Sem querer ofender.”

W. S. Graham era pobre, arredio e alcoólatra. Morou de favor num trailer, pedia sapatos emprestados, comia mariscos e ovos de gaivota que catava na praia. Tinha muita saudade da Escócia natal, mas nunca voltou lá. Morreu em 1986. Deixou mulher e filha. Estava com 67 anos.

Na imagem, há um recado com letra manuscrita em um papel amarelado. "Para Alexander Graham. Deitado dormindo e andando. Ontem à noite encontrei meu pai que pareceu contente em me ver. Ele quis falar. Vi sua boca dizendo algo, mas o sonho não tinha som. Estávamos cercados por barcos a vapor com rodas de pás no cais velho em Greenock. Senti o cheiro do alcatrão e das cordas. Parecia que eu estava de pé ao lado do canhão de ferro que os rebocadores usaram para amarrar quando eu era criança. Virei para ver papai de pé do outro lado da calçada sob a lâmpada que deixavam acesa. Ele me reconheceu na hora. Pude perceber isso. Ele estava bonito, a mesma idade. As boas sobrancelhas de quando me pegava aos domingos e dizia que íamos dar uma passeada. Papai, o que estou fazendo aqui? O que é que estou fazendo agora? Você se orgulha de mim? Ao ir embora, eu sei que você quis me dizer algo. Você parou e quase virou para trás para dizer algo. Meu pai, eu tento ser o melhor em você no que você sempre me dá. Deitado dormindo e rondando o cais iluminado pela treva. Era meu pai de pé. Tão real como a vida, senti o cheiro do alcatrão e das cordas do cais. Acho que ele queria falar, mas o sonho não tinha som. Acho que lhe devo ter amado."
Bruna Barros/Folhapress

Ele não tinha lugar no mundo. Nem a sua poesia, ignorada por leitores e críticos. Isso apesar de ter sido defendido por dois pesos-pesados, com Nobel e tudo: T.S. Eliot, que o publicou na editora Faber, e Harold Pinter, que lhe deu dinheiro para se manter vivo.

Seu poema mais conhecido, o longo “A Pesca Noturna”, de 1955, diz:

“Bem suave bate o
Sino do cais à noite,
Abrindo uma porta
Para que os mortos
Trazidos à harmonia
Falem alto em silêncio.”

E o silêncio falou bem alto: ficou 15 anos sem publicar. Correu o boato na Faber, pois poucos o conheciam fora dali, que morrera. Voltou enfim a lançar livros e ganhou um prêmio literário. Com o dinheiro, pôde fazer uma reforma e trouxe a privada para dentro do seu chatô.

Um dos poemas que publicou é dedicado a seu pai, Alexander Graham, traduzido acima, na ilustração 
de Bruna Barros.

Então. Sem querer ofender, tente escrever quatro linhas que parem de pé. Que tenham o seu jeito. Que não ecoem o tantas vezes dito antes por outros. Linhas límpidas que falem à fuligem do mundo. Tente. Tente. Graham voltará daqui a pouco para ver o que você fez.

É assim a sua curta obra —linhas em branco em busca de sentido. É aquilo que o pai lhe disse, mas o sonho não tinha som e não deu para escutar. É a suave vibração que fica no ar depois de o sino tocar à noite no cais. “É quase embaraçoso estar vivo e só.”

Seus poemas às vezes alternam o narrador. Em “Linhas sobre o Relógio de Roger Hilton”, ele fala sobre o presente que lhe foi legado por um amigo ao morrer. De repente, é o relógio de pulso que passa a escrever, e descreve o poeta:

“Ele acende a luz
Para pegar um cigarro
Serve-se um Teachers
Me pega e segura perto
Do rosto solitário para
Ver meus ponteiros. Acha
Que não está sendo olhado.”

A última palavra, “olhado”, no original é “watched”, que comporta “watch”, relógio. O poeta é “relojoado”.

Numa carta, considerou “encorajador” seu único almoço com Eliot. O escritor monumental disse ao miniaturista que ele tinha um “ritmo maravilhoso”. Por ser “intelectual”, porém, sua poesia estava fadada a “ir devagar” porque as pessoas têm “preguiça de pensar”.

Graham não era um intelectual, ao menos no sentido de se apoiar na erudição. Mas a partir daquele almoço seus versos ficaram mais palpáveis. Nem por isso ganharam leitores com rapidez.

Só há alguns meses a marcha lenta foi acelerada, com a edição de duas coletâneas suas, uma na Inglaterra e outra nos Estados Unidos. Até os críticos, essas lontras preguiçosas, passaram a estudá-lo.

Eles vêm martelando que a concretude de seus versos mira os outros lá fora, dos quais o poeta se esquiva. A linguagem é tida como um entrave porque ela é movediça como as pessoas, como 
Graham, como a vida. Sua obra não tem os floreios de um escritor ensimesmado.

“Preâmbulo”, por exemplo, diz: “Não importa quem é você/ Não importa quem sou eu”, porque o seu livro “sem propósito ou motivo” se fez “por si mesmo e pelas circunstâncias”. Ele não se destina a ninguém “e agora é deixado como um objeto/ para ser encontrado por mais alguém”.

A poesia de Graham —inédita no Brasil— se contrapõe à inarmonia do mundo e passa adiante um pouco do que restou:

“Então falei e morri.
Então dentro da morte
Da noite e da morte de
Minha vida estas palavras
Morreram e acordaram.”
 

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