Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Da música absoluta à aplicada

Em 18 discos, uma parte das 500 trilhas sonoras de Ennio Morricone

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“Composing for the Films” (compondo para os filmes) foi publicado em 1947, nos Estados Unidos. Seu autor, Hanns Eisler, fora músico de vanguarda em Viena. Tornou-se comunista, dirigente do PC alemão e fez música para peças de militância antifascista. O nazismo o levou a se exilar na Califórnia.

Ele compôs em Hollywood a trilha sonora de oito filmes, duas das quais indicadas ao Oscar. Denunciado pela irmã, anticomunista rábica, foi caçado pelos macarthistas e expulso dos Estados Unidos.

Só em 1969, na Alemanha, “Composing for the Films” saiu com o nome do seu segundo autor, Theodor Adorno. Ele ocultara a coautoria do original em virtude, justamente, do cerco macarthista.

Quer dizer: o livro, não publicado no Brasil, é obra da Escola de Frankfurt. Ele analisa a música do cinema na teoria (com elementos da estética, da sociologia e da economia) e na prática (esmiuçando a linha de montagem dos grandes estúdios de Hollywood).

Para a teoria crítica, os filmes são mercadorias produzidas pela indústria do entretenimento. Não são obras artísticas nem buscam a iluminação, mas o entorpecimento da plateia. Ao repetir ad nauseam sustos, socos e risos ocos, o cinema é um eterno trailer de si mesmo.

Já a música busca humanizar filmes que desumanizam o espectador. Ela reitera o óbvio para tornar mecânica a reação do público. O galã beija a mocinha e lá vêm, infalíveis, violinos melosos. O herói parte para a porrada e tambores rufam. O fetichismo automatiza a reação das pessoas.

As trilhas sonoras nem sequer são música, porque não têm autonomia, são peças de uma engrenagem mercantil e alienante. Será mesmo? Nada melhor para pensar o assunto que “Ennio Morricone: Trilhas Sonoras (1964-2015)”. Lançada na Europa, mas não aqui, a caixa com 18 CDs custa os olhos da cara, cerca de € 90, ou R$ 407.

Vale a pena porque Morricone compôs 500 trilhas sonoras, entre elas as de maior sucesso da história do cinema. Sua obra forma um arco que vai de “Por um Punhado de Dólares”, de Sergio Leone, a “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino.

Com formação erudita, como Eisler e Adorno, ele se filiou à Segunda Escola de Viena. Foi íntimo dos preceitos de Schoenberg, Webern e Berg; da invenção dodecafônica, serial e atonal; da estética contra a alienação musical.

Morricone foi também vital para o cinema engajado italiano. Compôs para Pasolini (“Gaviões e Passarinhos”, “Teorema”), Pontecorvo (“A Batalha de Argel”, “Queimada”), Montaldo (“Sacco e Vanzetti”), Petri (“A Classe Operária Vai ao Paraíso”) e Bertolucci (“1900”).

Tem-se, então, um músico de vanguarda sensível à esquerda e coautor de filmes de arte. Mas que, os 18 CDs atestam, produziu mercadorias às pencas. São filmes de gângster estereotipados, melodramas lacrimosos, pornôs lights risíveis.

No seu livro de memórias, “Ennio Morricone: In His Own Words”, também inédito no Brasil, Morricone distingue a “música absoluta” da “aplicada”. A absoluta, expressão usada por Wagner, nasce da vontade soberana do criador. Não tem objetivo extramusical e existe em si.

Nesse diapasão, Morricone integrou o Gruppo d’Improvvisazione Nuova Consonanza e compôs mais de cem peças eruditas. Uma meia dúzia de melômanos deve conhecê-las.

Já a música aplicada depende de um meio externo a ela. O compositor sustenta que a defendeu dos propósitos comerciais da indústria, empregando recursos formalistas, sobretudo a dissonância.

A música aplicada provém, pois, da tensão entre forças contraditórias. Há desde a pressão do tempo (houve anos em que Morricone fez 20 trilhas) até o oportunismo (o disco com Chico Buarque durante seu exílio na Itália, “Per un Pugno di Samba”), passando pelo teimoso impulso estético.

Os CDs mostram que a música aplicada de Morricone é elevada e criativa, mescla o lírico, o épico e o sacro. Mas nem sempre fica de pé sem a memória dos filmes. Ela rendeu mais quando Morricone a compôs previamente, o diretor a tocou nas filmagens e, na edição, se subordinou a ela —como Leone.

Ou quando recorreu aos leitmotivs: a gaita em “Era uma Vez no Oeste”; o piano desafinado em “A Classe Operária Vai ao Paraíso”; a flauta guarani em “A Missão”. Ou quando radicalizou: os créditos de “Gaviões e Passarinhos”, cantados por Domenico Modugno.

Ilustração mostra três homens de costas, vestidos de caubóis, com chapéu e capas, em terreno desértico.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 4.jan.2020. - Bruna Barros

Em tempo: Eisler aderiu ao realismo socialista de Stálin e compôs o hino da finada República Democrática da Alemanha. Adorno defendeu no fim da vida o novo cinema alemão, tratando-o como arte. Morricone, hoje com 91 anos, compôs “Missa do Papa Francisco”.

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