Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Os absurdos e violências dos sonhos reproduzem a virulência e o irracionalismo da vida real

Elisabeth Roudinesco sonhou com os pesadelos de Adorno

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Theodor W. Adorno foi convidado, em setembro de 1958, para o cinquentenário de fundação da escola onde estudou, em Frankfurt. Houve um baile de gala. O filósofo dançou com um gigantesco buldogue marrom-amarelado que vestia fraque e andava sobre as patas traseiras.

Ilustração de pessoa careca deitada com os olhos fechados. No fundo, há estrelas e luas
Bruna Barros/Folhapress

Como não tinha nenhum talento para a dança, deixou-se conduzir pelo cachorrão. Deu certo. Pela primeira vez na vida se sentiu um pé-de-valsa. Foi correspondido: Adorno e o buldogue à vezes se beijaram. Até que, como nos filmes sem imaginação, ele acordou. Fora um sonho.

Um sonho maravilhoso, e não um pesadelo. Depois de anotá-lo no caderno que mantinha no criado-mudo, concluiu: “Despertei com um sentimento de extrema satisfação”.

Apenas registra que, de fato, fora convidado para o aniversário do colégio; usa uma expressão de Freud: “vestígio do dia”. Para ele, o sonho reelabora eventos diurnos para realizar desejos inconscientes e recalcados, de natureza sexual e origem na infância.

De 1934 a 1969, Adorno pôs seus sonhos no papel. Pretendia publicá-los, mas morreu antes.

Felizmente, Gretel, sua mulher, os havia datilografado e ele assinara em baixo. Publicado em 2005 (não há tradução para o português), o livro é espantoso.

Os pesadelos de Adorno ocupam boa parte do verbete “Sonhos” do recém-lançado “Dicionário Amoroso da Psicanálise” (Zahar, 358 págs.), de Elisabeth Roudinesco, historiadora e analista francesa.
Há 22 anos, ela publicou —com Michel Plon— “Dicionário de Psicanálise”, um cartapácio enciclopédico de 1.200 páginas. Ele tem os conceitos da disciplina; biografias dos criadores; as técnicas clínicas; as divergências e escolas nas quais o freudismo se dividiu.

É reeditado desde então porque virou obra de referência, assim como outros livros dela: a “História da Psicanálise na França” e as biografias “Sigmund Freud” e “Jacques Lacan”. Já o “Dicionário Amoroso” é íntimo, quase confessional.

Ela selecionou 90 assuntos e os transformou em artigos-verbetes. Há temas cuja relação com a psicanálise é imediata, como “Édipo” ou “Eros”. Mas na maioria a ligação é tênue, indireta: “Napoleão”, “cidades brasileiras”, “Jesuítas”, “Marylin Monroe”.

O livro jamais se torna um passeio ao acaso: a livre associação está a serviço da interpretação. A subjetividade de Elisabeth Roudinesco não a afasta da condição de historiadora cultural, daquela que busca entender as mentes do mundo objetivo.

Ela se diz cinéfila e leitora onívora, por exemplo. Descreve suas idas à cinemateca e seu amor pelos filmes de Hollywood; conta sua formação literária; fala da livraria que abriu; apresenta sua biblioteca. Mas o retrato que faz não é só o de si mesma. É o do impacto da psicanálise na cultura.

Obra de uma analista que sabe a história da psicanálise em detalhe e conhece sua situação atual, o “Dicionário Amoroso” abre novos caminhos para pensar as ideias de Freud. O domínio do assunto não conduz, contudo, à onipotência do saber, esse atributo estéril do conformismo intelectual.

Ao contrário. No verbete mais inventivo do livro, sobre o sonho, Roudinesco investiga um velho tema com agudeza e audácia. É mais do que pertinente porque, com a pandemia, sonha-se muito.

Segundo o que dizem psicanalistas daqui e da Europa, o medo, o confinamento e as incertezas provocaram tumultos psíquicos. A angústia produz pesadelos que dizem respeito tanto à constituição humana como aos dias que correm.

Roudinesco cita a observação de Karl Kraus que coube a Freud o mérito de ter dado organização aos sonhos, mas que tudo neles se passava “como na Áustria”. Ou seja: o emaranhado de absurdos e violências da vida onírica reproduzia a virulência e o irracionalismo da vida real.

O “Dicionário Amoroso” recorre então a Adorno e mergulha nos seus sonhos, que vão da sua saída de Frankfurt, passam pelo exílio e voltam à Alemanha. Seguem alguns exemplos.

Sonhei que seria crucificado. Fui a um bordel. Houve a execução de muitos nazistas. Ela tirou dois velhos dentes amarelos de sua boca e me deu de lembrança. Eu era um leitão jogado em água fervente. Gritei na cara de minha mãe: maldito seja o corpo que me deu à luz. Juntamo-nos para assassinar o psicoterapeuta.

Para Elisabeth Roudinesco, os sonhos de Adorno —perversos, cruéis, de ódio e compaixão— são uma imersão estarrecedora na sua subjetividade, e também a expressão literária do inconsciente. “O sonho é negro como a morte”, escreveu ele. E neles tudo acontece como se fosse hoje.

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