Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Quem começa a ler Drummond pela prosa periga nem chegar à poesia

Relançamento de seus livros de crônicas deveriam deslumbrar, mas dão chabu com literatura morna e insossa

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O relançamento simultâneo de meia dúzia de livros de prosa de Carlos Drummond de Andrade pela Companhia das Letras é motivo de fogos de artifício e desencanto. Deveriam deslumbrar, mas dão chabu.

Se um dia houver interesse pelo Brasil do século 20, a lírica de Drummond será uma catarata de luz. Ela ilumina sonhos e pesadelos do período e percorre o que apodrecia no breu das esperanças perdidas.

Se o poeta confronta o tempo que lhe foi dado viver, “inventando novos vocábulos e dando sopro aos exaustos” para conhecer a si mesmo e ao mundo, o prosador é de uma moderação sovina. Não se arrisca nem se extasia, é tão comedido que acaba modorrento.

O choque entre uma e outra face do escritor produz paradoxos. É em vão que os fãs do poeta escarafuncham suas crônicas prosaicas. E quem começa a ler Drummond pela prosa periga nem chegar
à poesia. Ela não é nem quente nem fria, mas morna; nem ruim nem boa, insossa. ​

O choque entre as personas de Drummond talvez se explique mais pelos gêneros literários que adotou do que pela personalidade. A poesia foi sua forma de expressão por excelência. Por consumarem uma necessidade íntima e vital, seus versos não têm nada de frouxo (exceto os de circunstância).

Quanto à prosa, Drummond recorreu a ela para pagar contas no fim do mês. Foi burocrata, um funcionário público que trocou a função para produzir crônicas em série por 30 anos, primeiro no Correio da Manhã e depois no Jornal do Brasil.

Publicou mais de 6.000 delas. Precisava do dinheiro, e os jornais pagavam mal. Sua situação era semelhante à de Manuel Bandeira, que, ele conta, tinha 76 anos e andava de ônibus. Drummond labutou na mina de sal da crônica até que, octogenário, pôde fugir dela.

A crônica é inferior à poesia. Como notou Antonio Candido, não haveria cabimento em dar o Nobel a um cronista. É um trabalho quase braçal, uma estiva que nasce da vontade da imprensa em providenciar um refresco aos leitores. É mercadoria perecível por definição: deve ser consumida no dia e logo esquecida, para que se venda outra amanhã.

Há por certo cronistas melhores (Rubem Braga) e piores (Rachel de Queiroz), soberbos (Machado) e repulsivos (Nelson Rodrigues) — e Drummond está na média da mediocridade intrínseca ao gênero.

As centenas de crônicas dos seis livros interessam mais pela assinatura e pelo que acrescentam à história do autor, menos pelo que são concretamente, frase atrás de frase. Se não fossem de Drummond, bem menos gente iria se dispor a lê-las. É duvidoso até que fossem republicadas.

Ainda bem que nem tudo é crônica e que os relançamentos registram dados de sua vida, ainda que nem sempre relevantes. “Tempo Vida Poesia”, por exemplo, reproduz oito entrevistas que Drummond deu, em 1954, ao programa de rádio de uma amiga, Lya Cavalcanti.

Os casos e fatos que contou a ela condizem com a irrelevância da biografia de Drummond. São memórias mornas de coisas pequenas: peraltices de adolescentes provincianos; o grande escritor que forma o gosto em autores lastimáveis; a irrelevância com que vê a política.

Política e biografia também estão no cerne do mais informativo dos livros, “O Observador do Escritório”, que teve origem conturbada. De 1943 a 1977, Drummond manteve um diário, até que destruiu boa parte dele.

Com o que sobrou, fez “O Observador”, lançado em 1987, e “Uma Forma de Saudade”, publicado 30 anos depois de sua morte. Este último é extraordinário, a única prosa na qual Drummond fala de forma lancinante e profunda da família.

“O Observador” está muito aquém. Ele mostra um intelectual que acha “esplêndido” “Julgamento em Nuremberg” e chama “O Ano Passado em Marienbad” de “droga pretensiosa”. Não há poetastro que Drummond não cultue, desde que seja amigo.

Na política, sua trajetória foi complexa. Quadro do Estado Novo, com sua queda Drummond passou para a oposição. A vitória soviética sobre o nazismo fez com que cogitasse militar esquerda.

Mas, sem convicção, meses depois se desapontou e voltou ao alheamento. O período engajado lhe rendeu a alta voltagem de “A Rosa do Povo”. E a desilusão o levou aos píncaros de “Claro Enigma”. Na prosa, porém, só há pocotó, pocotó.

Na ditadura, sua conivência e conformismo ficaram difíceis de acompanhar. Simpático ao golpe militar, cedo se frustrou. As torturas e assassinatos se multiplicaram, e sua poesia e prosa não se abalaram. Na época o artista brasileiro de maior autoridade moral, Drummond se calou.

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