Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu guerra israel-hamas

Fúria e força de Troia a Gaza

Duas mulheres trazem para o presente a cólera cataclísmica da Ilíada

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Saiu há pouco uma nova tradução para o inglês da "Ilíada", a obra-prima inaugural da literatura europeia. Atribuído a Homero, mas criado por dezenas de gregos anônimos, o poema narra o desfecho da Guerra de Troia. A tradução foi elogiadíssima.

É obra de Emily Wilson, classicista inglesa que foi a primeira mulher a traduzir a "Odisseia", lançada quando tinha 46 anos. Com diploma de Oxford e doutorado em Yale, ela tem tatuagens nos ombros, braços e pernas. Ao declamar em grego, se exalta, faz caras e bocas.

É o de menos, contudo, que seja jovem, performática e, registre-se, bonita. Conta muito mais ter trazido a contundência homérica para o presente.

A doutora verteu o encrespado hexâmetro dáctilo, nulo em inglês, para o vaporoso pentâmetro iâmbico, o ritmo shakespeariano por excelência. Repetidos a mais não poder no original, os epítetos (o saqueador de cidades, a de olhos reluzentes, o de pés velozes) variam.

Assim, Emily Wilson decompõe "Eos Rododáctila", a "Dedirrósea Aurora" do maranhense Odorico Mendes, em "a Aurora raiou e riscou o céu com rosas", "os dedos da Aurora desabrocharam", "a Aurora exibiu as mãos rosadas".

Sobre um fundo preto a imagem de três mulheres chorando. No centro uma mulheres abraça um corpo envolto em tecido preto e de cada lado uma mulher a ampara. A imagem das mulheres em em tom de laranja e as linhas de contorno são pretas, as três mulheres vestem véu.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 17 de novembro de 2023 - Bruna Barros/Folhapress

A "Odisseia" diz que Ulisses é um "polytropos", alguém que dá muitas voltas, é ardiloso. O termo tem conotação positiva por ser sinônimo de arguto, inteligente. E é negativo porque significa também enganador, espertalhão. A professora usou "complicado" —e Ulisses era mesmo complicado.

A criatividade é igual na "Ilíada". A primeira palavra do épico é "mēnin", que se traduz para cólera, ou um correlato: ódio, ira, raiva. Emily Wilson explica que, como se aplica "mēnin" aos deuses, o substantivo extrapola o sentido usual. A fúria tem então de ser intensificada por um adjetivo: funesta, mortífera, desvairada, algo do gênero.

A tatuada veio com uma expressão impactante: "cólera cataclísmica", aquela que faz da carne humana almoço de cães e jantar de abutres, faz com que dores irremediáveis mutilem gregos e troianos, faz do colo de Hades, o deus da morte, o leito de tanta gente despedaçada.

A Guerra de Gaza reverbera imagens da Guerra de Troia de Homero e Emily Wilson. São estupros e sequestros. Divindades que descem do Olimpo, a Casa Branca, para distribuir armas. Multidões de maltrapilhos em fuga. Meninas aos prantos. Cadáveres jogados no chão. Rumores e ameaças. Rostos tomados pelo pavor. Cólera cataclísmica.

A Guerra de Troia foi provocada por Páris, o príncipe troiano que raptou Helena, mulher de um maioral grego, Menelau. Ele persuadiu a flor da fidalguia a ir buscá-la e salvaguardar sua honra, mas o verdadeiro motivo deles foi pilhar a cidade, queimá-la, escravizar quem sobrasse.

A origem da Guerra em Gaza cabe num par de perguntas de Mangabeira Unger: por que os palestinos devem pagar pelo que os alemães fizeram? Com a derrota alemã, e a revelação do massacre de 6 milhões de judeus, por que não se deu a eles a Bavária, em vez da Palestina?

Em 1940, outra mulher, Simone Weil, escreveu sobre a guerra da "Ilíada". Como Ulisses, ela era complicada. Lutou com os anarquistas na Guerra Civil Espanhola. Trabalhou numa fábrica, a Renault, para conhecer a condição proletária. Na Segunda Guerra Mundial, se recusou a comer mais que a ração de soldados —e morreu de inanição.

"A ‘Ilíada’, ou o Poema da Força" é o nome de seu ensaio que diz: "A força transforma em coisa quem é submetido a ela. Quando exercida até o fim, ela transforma o homem em coisa no sentido literal da palavra, porque o transforma em cadáver. Era uma vez alguém e, um instante depois, não há ninguém".

E mais: "A força transforma em coisa o homem que continua vivo". Porque "um homem desarmado e nu contra o qual se aponta uma arma torna-se cadáver antes de ser atingido". E "um homem reduzido a esse grau de desgraça gela quase tanto quanto gela um cadáver".

Ela sustenta que, no fragor da guerra, não há vencedores e vencidos. Como precisam sofregamente da força, todos têm de arrumar mais armas, têm de se humilhar para manter aliados, têm de matar e morrer até sabe-se lá quando. São todos subjugados pela força.

A força venceu na Guerra de Troia e vencerá na de Gaza. Na penúltima frase de "A ‘Ilíada’, ou o Poema da Força", Simone Weil entrevê a esperança, diz que será assim até que os povos "deixem de admirar a força, odiar os inimigos e desprezar os infelizes". Mas a frase final do ensaio é puro pessimismo: "Duvido que seja para já".

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