Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu Rússia

O romance censurado pelo stalinismo que virou sucesso na Rússia de Putin

O derradeiro paradoxo é que o filme 'antirrusso' baseado no livro só pode ser visto na Rússia

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É tão a espessa nuvem de enxofre que envolve o romance russo "O Mestre e Margarida" que ele poderia ter sido escrito por Lúcifer, caso o Tinhoso fosse bem-humorado. O livro sulfuroso não para quieto: é uma coisa, depois outra, depois o contrário das duas. É difícil até descrevê-lo.

Ele lembra "Alice no País das Maravilhas", mas é demoníaco: um gato colossal fala, uma bruxa nua sobe às nuvens num porco voador, uma vampira crava os caninos num burocrata. Febril, a fantasia retrata a frieza da Moscou dos anos 1930 –apesar de parte do romance se passar na Judeia dos Evangelhos, sendo que nela o herói é Pilatos, não Jesus.

Embora seja uma comédia de humor mais negro que a asa da graúna, o Mestre e a Margarida do título são Romeu e Julieta, pois que se afogam na lava de um ultrarromantismo endemoninhado. Delirante, diabólico, com dezenas de doutas referências literárias, o livro virou best-seller na Rússia, se bem que depois de décadas de censura.

Entendidos dos EUA e da França o consideram um dos grandes romances do século 20, à altura dos de Proust e Joyce. Há centenas de adaptações dele para TV, balé, teatro, quadrinhos, desenhos animados, ópera, cinema e música. Lembra de "Sympathy for the Devil", dos Rolling Stones? Pois então: Mick Jagger se inspirou em "O Mestre e Margarida".

O romance é obra de Mikhail Bulgákov, um médico ucraniano que combateu os bolcheviques na guerra civil, foi jornalista e em seguida literato. Sempre às turras com o stalinismo, escreveu sua obra máxima em segredo, durante 12 anos, terminando-a um mês antes de morrer, em 1940.

Sabendo que tinha um caldeirão de fel no armário, sua viúva o escondeu até 1967, quando alguns trechos, com as pestilências devidamente higienizadas, foram publicados numa revista. A primeira edição integral saiu na União Soviética em 1973.

A ilustração é feita toda em preto e vermelho com pinceladas agressivas. Ao centro um diabo alado, preto com olhos vermelhos estende os braços para a direita. À sua direita um corpo de mulher nua e a sua esquerda há um gato com dentes à mostra.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 5 de abril de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

Satanás emergiu novamente no 25 de janeiro passado, quando um filme baseado no livro estreou em Moscou. Deu no New York Times: "A vida imita a arte e ‘O Mestre e Margarida’ agita a Rússia". E mais: "Foi uma das estreias mais dramáticas e carregadas da história russa recente".

O filme é uma superprodução de 17 milhões de dólares, dos quais 7 milhões vieram do Estado. Teve 5,5 milhões de espectadores até agora, número que leva produtores a soltar rojões. O triunfo foi intensificado pelas palmas ao fim de várias sessões.

Como tudo em torno do Beiçudo, a feitura do filme parece saída de um breviário de magia negra. Seu diretor, Michael Lockshin, é um norte-americano criado em Moscou. Em 1986, quando cientistas soviéticos fugiam para o Ocidente, o pai de Lockshin engatou marcha à ré: comunista, refugiou-se com a família em Moscou e denunciou o assédio do FBI.

O diretor topou adaptar o romance porque o amava desde a adolescência. Ao que parece, seu filme enfatiza a perseguição a um escritor refratário ao regime –um tema não muito do agrado de Putin. Mesmo assim, "O Mestre e Margarida" foi adiante; era a adaptação de um clássico que nada teria a dizer ao presente.

Deu-se a balalaika: a Rússia invadiu a Ucrânia, a coerção à intelligentsia se acentuou e o lançamento do filme foi adiado. O desconforto cresceu porque o melífluo Lockshin, de volta à sua casa em Los Angeles, foi às redes sociais apupar Putin e apoiar a Ucrânia.

Não se sabe por que diabos, o filme estreou, embora sem propaganda nem divulgação. Mas, para fúria do Kremlin, levou uma legião de diabretes ao cinema. Putin, versado nas sanhas do Pata-de-Bode, deve ter mandado para o quinto dos infernos os burocratas que o liberaram.

A balalaika virou sabá das feiticeiras: serviçais de Putin na imprensa e na televisão desancaram o filme, xingando-o de antirrusso. O sucesso de uma obra financiada e atacada por um mesmo regime configura o que Lênin, outra encarnação do Demo, chamava de contradições do sistema.

O derradeiro paradoxo é que o filme "antirrusso" só pode ser visto na Rússia, porque as autoridades luciferinas proibiram sua exportação. Mas o que resta é ótimo –o magma de sortilégios do romance de Bulgákov. (Há duas traduções dele na praça, a de Irineu Franco Perpetuo, da Editora 34, e a de Zoia Prestes, da Alfaguara).

É nele que o Capiroto proclama, ao saber que o Mestre pôs fogo em seus escritos sobre Pilatos: "Manuscritos não queimam". O de "O Mestre e Margarida", de fato, escapou aos lança-chamas de Stálin e Putin. O fogo nada pode contra a arte à vera, a negativa, a de Belzebu e Bulgákov.

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