Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

O desafio de um planeta, dois sistemas

Precisamos de uma combinação de competição e cooperação com a China ascendente

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A dissolução cada vez mais rápida do relacionamento entre a China e os Estados Unidos é o mais importante entre os eventos atuais. Como isso deve ser administrado, diante da interdependência mundial?

Três indícios recentes revelam o alarme quanto à ascensão da China ao seu status atual como "superpotência júnior" do planeta, nas palavras de Yan Xuetong, da Universidade Tsinghua.

Um é a campanha contra a Huawei, porta-bandeira das ambições tecnológicas chinesas, que deve ser contemplada no contexto da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China —um país descrito pelos americanos como "competidor estratégico".

O segundo é um estudo publicado pela BDI, a principal organização setorial da indústria alemã e grande proponente do livre comércio, que define a China como "parceira e competidora sistêmica".

O último é a descrição da China de Xi Jinping, por George Soros, como "o oponente mais perigoso daqueles que acreditam no conceito de uma sociedade aberta".

Portanto, esse é um ponto sobre o qual o governo nacionalista americano, os defensores do livre comércio alemães e um notável proponente das ideias liberais concordam: A China não deve ser vista como amiga. Na melhor das hipóteses, ela é um parceiro desconfortável; na pior, uma potência hostil.

Deveríamos concluir que uma nova "guerra fria" começou? A resposta é sim e não. Sim, porque tantos ocidentais veem a China como ameaça estratégica, econômica e ideológica. Isso vem não só de Donald Trump, não só dos aparatos de segurança nacional, não só dos Estados Unidos, e não só da ala direita do espectro político, e está se tornando cada vez mais uma causa unificadora.

A resposta também é não, porém, porque o relacionamento com a China é muito diferente do relacionamento com a antiga União Soviética. A China não está exportando uma ideologia mundial, mas se comportando como as grandes potências usualmente se comportam. E além disso, diferentemente da União Soviética, a China está integrada à economia mundial.

A conclusão é que a hostilidade generalizada contra a China pode ser muito mais desordenadora do que a guerra fria. Se, acima de tudo, o povo chinês vier a se convencer de que o objetivo do Ocidente é impedir que desfrute de uma vida melhor, a hostilidade seria interminável e irrestrita. A cooperação desabaria. Mas nenhum país pode ser uma ilha, hoje.

Não é tarde demais para evitar um afastamento. O caminho certo envolve administrar um relacionamento que será tanto cooperativo quanto competitivo, e assim reconhecer que a China pode ser amiga e inimiga ao mesmo tempo. Em outras palavras, devemos aceitar a complexidade. Esse é o caminho da maturidade.

Ao fazê-lo, precisamos reconhecer que os Estados Unidos e seus aliados (se é que os americanos ainda reconhecem o valor destes) têm grandes forças. A ascensão da China foi estupenda. Mas juntos, os Estados Unidos e seus aliados gastam muito mais em defesa, têm economias maiores e respondem por proporção maior do que a da China nas importações mundiais.

Além disso, a dependência da China quanto aos mercados de alta renda é muito maior do que a dependência dos Estados Unidos com relação à China. É provável que essas vantagens perdurem, porque a China está deixando de lado o caminho das reformas, como argumenta Nicholas Lardy, do Instituto Peterson de Economia Internacional, em seu novo livro, e com isso a economia do país pode sofrer acentuada desaceleração.

Além disso, a despeito da ascensão mundial do autoritarismo e dos problemas deixados pela crise financeira, as democracias de alta renda continuam a ter uma ideologia mais atraente de liberdade, democracia e Estado e Direito, se comparada ao comunismo chinês. Também é evidente que os fracassos que o liberalismo ocidental sofreu nos últimos anos foram causados por ele mesmo; não devemos culpar os outros pelo acontecido, por mais atraente que isso pareça.

Assim, os Estados Unidos podem ver sua situação com muito mais tranquilidade que a China, desde que retenham sua rede de alianças, especialmente se considerarmos sua posição geográfica e a força de sua economia. Caso ajam assim, os americanos poderiam também reconhecer que interdependência com relação à China é uma força estabilizadora, porque reforça o interesse de ambos os lados em um relacionamento pacífico.

De forma semelhante, os Estados Unidos deveriam reconhecer que fazer causa comum com seus aliados, no contexto do sistema internacional de comércio baseado em regras criado por Washington, reforçaria a pressão sobre Pequim por reformas. De fato, em uma entrevista em Davos, o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe argumentou que a melhor maneira de lidar com a China é precisamente nesse contexto. Fazer concessões em apoio a um acordo mundial de comércio seria muito mais fácil para a China do que fazê-lo em resposta a pressão bilateral americana. Se isso tornar necessária uma reforma nas regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizá-la tampouco seria problema.

A cooperação é tão essencial quanto a interdependência. Não podemos administrar o meio ambiente mundial ou garantir a prosperidade e a paz sem cooperação com a China. Além disso, se cada país tiver de escolher um lado ou o outro, voltariam a surgir divisões profundas e custosas dentro dos países e entre eles.

Nada disso implica que os países ocidentais precisem aceitar o que quer que a China deseje. Desapropriações de empresas estrategicamente importantes seria algo que os dois lados deveriam evitar.

Por outro lado, caso surjam provas de perigo estratégico causado pela presença de certas empresas dentro de nossas economias, seria justificado agir contra elas. Mas a palavra chave quanto a isso é "provas".

Por fim, e o mais importante, é de fato vital, como disse Soros, que protejamos nossa liberdade e a das pessoas chinesas que vivem em nossos países contra o novo sistema de "crédito social" chinês e outras formas de interferência extraterritorial, na medida do possível. Mas isso seria mais fácil de justificar caso os Estados Unidos não agissem da mesma forma extraterritorial. De fato, a crença dos Estados Unidos em que eles têm o direito de impor suas prioridades ao mundo quando assim desejarem é altamente desestabilizadora.

Uma nova grande potência emergiu, e ela jamais fez parte de um sistema dominado pelo Ocidente. Em resposta, muita gente quer empurrar o planeta para uma era de competição estratégica desenfreada. A história sugere que isso é perigoso. O que precisamos em lugar disso é de uma combinação de competição e cooperação com a China ascendente. A alternativa seria hostilidade cada vez mais profunda e desordem cada vez maior. Nenhuma pessoa sensata desejaria isso. Por isso é melhor parar, antes que seja tarde.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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