Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

Conflito entre EUA e China é um desafio para o mundo

Os países menores precisam se unir para sustentar o livre comércio multilateral

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Onde o aprofundamento do conflito econômico entre os Estados Unidos e a China deixa o resto do mundo, especialmente os aliados históricos dos EUA? Em circunstâncias normais, estes últimos apoiariam o aliado. Afinal, a União Europeia compartilha de muitas das preocupações americanas quanto ao comportamento da China. No entanto, as circunstâncias não são normais.

Sob Donald Trump, os Estados Unidos se tornaram uma superpotência renegada; hostil, entre outras coisas, às regras fundamentais de um sistema de comércio baseado em acordos multilaterais e normas compulsórias. De fato, os aliados dos Estados Unidos também se tornaram alvos de intimidação bilateral.

Assim, o que os aliados dos Estados Unidos devem fazer enquanto estes combatem com a China? A questão não se limita a Trump. O foco dele em saldos na balança comercial bilateral pode até ser administrável, de alguma maneira. O pior é que grande proporção dos americanos compartilha de sua hostilidade cada vez maior não só quanto ao comportamento da China mas quanto ao fato da ascensão chinesa.

Também estamos vendo uma grande virada no pensamento conservador. Em 2005, Robert Zoellick, secretário assistente de Estado no governo de George W. Bush, declarou que a China precisava se tornar "um participante responsável" do sistema internacional. Recentemente, o atual secretário de Estado americano, Mike Pompeo, revelou perspectiva diferente.

O especialista em assuntos internacionais Walter Russell Mead descreve a ideia central de Pompeo da seguinte maneira: "Enquanto os liberais internacionalistas acreditam que a meta do engajamento americano deveria ser promover o surgimento de uma ordem mundial na qual as instituições internacionais suplantem gradualmente os países como principais agentes da política mundial, os conservadores internacionalistas acreditam que o engajamento americano deveria ser orientado por um foco mais estreito em interesses específicos dos Estados Unidos". Em resumo, os Estados Unidos já não veem motivo para serem "participantes responsáveis" do sistema internacional. O conceito deles, em lugar disso, é o da política de poder ao modo do século 19, na qual os fortes ditam regras aos fracos.

Isso também é relevante para o comércio internacional. É ilusório afirmar que o sistema de comércio se baseava no conceito de que instituições internacionais deveriam suplantar os países. O sistema foi construído sobre a dupla ideia de que os Estados buscassem acordos multilaterais uns com os outros e que a confiança nesses acordos seria reforçada por um sistema compulsório de solução de disputas. Isso geraria condições de comércio estáveis - algo de que os negócios internacionais dependem.

Tudo isso está em risco, agora. A ampliação da guerra tarifária e a decisão de limitar o acesso da Huawei - a única empresa de tecnologia avançada chinesa que tem lugar entre os líderes mundiais - à tecnologia americana parecem concebidos para manter a China em posição permanentemente inferior. E é certamente assim que os chineses encaram a situação.

A guerra comercial também está fazendo dos Estados Unidos um país fortemente protecionista, e suas tarifas, calculadas em base ponderada, em breve podem se tornar mais altas que as da Índia. Um estudo publicado pelo Instituto Peterson de Economia Internacional afirma que "Trump... está ameaçando impor à China tarifas que não ficam muito abaixo do nível imposto pelos Estados Unidos sob a Lei Tarifária Smoot-Hawley, de 1930". As tarifas podem até continuar assim altas, porque as demandas dos Estados Unidos na negociação são humilhantes demais para que a China as aceite. Essas tarifas em breve resultarão em busca de fornecedores alternativos. E podem em breve incidir sobre eles, também: o bilateralismo costuma se tornar doença contagiosa. Ao contrário do que alardeia Trump, os custos dessas medidas incorrem também sobre os americanos, especialmente os consumidores e os exportadores de produtos agrícolas. Ironicamente, muitas das áreas mais prejudicadas pelas tarifas são áreas que os republicanos controlam politicamente.

Haverá quem venha a concluir que os altos custos significam que o conflito não poderá ser mantido, especialmente se isso desordenar os mercados de ações. Um desfecho alternativo e mais plausível envolve o fato de que Trump e o presidente chinês Xi Jinping são líderes que gostam de ser vistos como "homens fortes", e que não podem ser vistos recuando. O conflito ou continuará congelado ou, o mais provável, se agravará à medida que o relacionamento entre as duas superpotências se tornar mais venenoso.

O que isso representa para os aliados dos Estados Unidos? Eles não deveriam apoiar as tentativas americanas de bloquear a ascensão chinesa. Isso seria inadmissível. Deveriam indicar em que pontos concordam com os objetivos americanos em termos de comércio e tecnologia, e, se possível, sustentar uma posição comum quanto a essas questões, especialmente entre a União Europeia e o Japão. Deveriam sustentar os princípios de um sistema multilateral de comércio, sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio (OMC). Se os Estados Unidos conseguirem sucesso em bloquear o sistema de solução de disputas da OMC, os demais membros deveriam chegar a um acordo informal para solução alternativa de disputas.

O mais importante é que parece possível sustentar o comércio liberal, em detrimento dos Estados Unidos e da China. Anne Krueger, ex-diretora executiva assistente do FMI, apontou em uma coluna que, por sua própria decisão insensata de rejeitar a Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), os Estados Unidos sofrem discriminação legal da OMC contra suas exportações aos membros do Acordo Abrangente e Progressivo de Parceria Transpacífico, que substituiu a TPP. A União Europeia também tem acordos de livre comércio com o Canadá e o Japão.

Isso é bom. Mas eles poderiam ir além. Países que veem os benefícios de uma ordem comercial forte poderiam fazer desses acordos de livre comércio um "acordo mundial de livre comércio entre os dispostos", do qual qualquer país disposto a aceitar os compromissos envolvidos poderia participar. Seria possível até imaginar um futuro no qual os participantes de um acordo mundial como esse pudessem defender os signatários contra ataques comerciais ilegais dos não membros, por meio de medidas coordenadas de retaliação.

A hostilidade entre os Estados Unidos e a China é uma ameaça à paz e prosperidade mundial. Quem está de fora não pode deter esse conflito. Mas tampouco deve se ver como impotente. Se as grandes potências preferirem ficar de fora do sistema de comércio multilateral, há quem possa substitui-las. Somados, esses participantes menores têm muita força. Deveriam agir tendo essa característica em mente.
 
Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

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