Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times juros inflação

Desigualdade está por trás do dilema dos bancos centrais

Estagflação poderia criar problemas esmagadores para devedores mais fracos, especialmente os emergentes

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Por que os bancos centrais estão encontrando tanta dificuldade para fazer seu trabalho? Uma opinião comum é a de que isso acontece porque são dirigidos por imbecis. Pessoas que fazem esse tipo de afirmação insistem que os bancos centrais precisam manter as taxas de juros alinhadas às normas históricas. Isso não procede, porque normas históricas são irrelevantes. O que precisa ser determinado é o motivo para que isso aconteça e quais são as implicações para as nossas economias.

Um estudo apresentado por Atif Mian, Ludwig Straub e Amir Sufi na conferência monetária de Jackson Hole, em 27 de agosto, ilumina essa questão. O trabalho chega à mesma conclusão que eles tinham atingido em uma pesquisa anterior: a principal explicação para o declínio nas taxas de juros reais é a desigualdade alta e crescente, e não fatores demográficos como os padrões de poupança dos integrantes da geração “baby boom” ao longo de suas vidas, ao contrário do que algumas pessoas argumentam.

A análise parte de estimativas sobre a verdadeira “taxa natural” de juros, um conceito que remonta ao economista sueco Knut Wicksell. Ele explicou que a taxa natural gera equilíbrio entre oferta e procura na economia, e que isso é demonstrado em forma de preços estáveis. A doutrina moderna das metas de inflação descende dessa ideia. Crucialmente, porém, sua estimativa dessa taxa para os Estados Unidos mostra uma queda de cerca de 4% ao ano, quatro décadas atrás, para cerca de zero, agora.

Prégio do Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, em Washington - Chris Wattie - 22.ago.2018/Reuters

Esse declínio acontece também em outros países de alta renda, como seria de esperar: em uma economia mundial aberta, as taxas reais de juros de equilíbrio deveriam convergir. Como o estudo também aponta, o declínio “gera preocupações sobre estagnação secular, ameaça causar bolhas nos preços dos ativos e complica a política monetária”. De fato, ele é uma grande parte do motivo para que os bancos centrais tenham tido de realizar compras de ativo de valor tão elevado em situações de crise, como a atual.

O principal argumento dos autores é de que o nível de poupança varia muito mais em função da renda, dentro das faixas etárias, do que entre as diferentes faixas etárias. As diferenças também são imensas: nos Estados Unidos, os 10% de domicílios de renda mais alta têm poupanças 10 a 20 pontos percentuais mais elevadas, como proporção de sua renda, do que os 90% de domicílios de renda mais baixa. Dada essa divergência, a alteração na distribuição de renda em favor do topo elevou a propensão geral a poupar. Como explicação da propensão crescente a poupar e da queda nas taxas reais de juros, a transição da geração baby boom para a meia-idade não funciona, porque a alta no nível de poupança foi contínua enquanto o impacto da mudança democrática sobre o comportamento em termos de poupança não foi.

Em nível agregado, a poupança e o investimento precisam se equiparar. Assim, o que acontece quando os ricos se tornam mais ricos e tentam poupar ainda mais? As taxas de juros precisam cair. E o impacto disso sobre o investimento empresarial é bastante fraco. De fato, a propensão a investir vem sendo cronicamente fraca, em parte por razões demográficas. Assim, a compensação teve de vir ou de déficits fiscais persistentes ou de gastos mais altos por parte dos 90% de pessoas de renda mais baixa. As duas coisas são alimentadas por dívidas, e o segundo fator também é propelido pelas bolhas nos preços dos ativos, especialmente nos preços dos imóveis residenciais. À medida que os bancos centrais buscam acompanhar a queda da taxa natural de juros, eles estimulam esses dois processos. Mas, à medida que a proporção de endividamento cresce, as taxas de juros naturais caem ainda mais, porque os altamente endividados se tornam ainda menos dignos de crédito.

Uma objeção a esse argumento é a de que isso se refere apenas a um país, por mais importante que ele seja. Mas a tendência rumo a uma desigualdade de renda maior é compartilhada por quase todas as grandes economias, incluindo, notavelmente, a China. De fato, o excedente de poupança do restante do planeta também se faz sentir nos déficits em conta corrente persistentes dos Estados Unidos. A necessidade de compensá-los torna a tarefa do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, ainda mais difícil.

A crise financeira de 2007-2012 deveria ser vista como consequência desses processos, e foi resolvida na época por medidas de resgate ao sistema financeiro, aperto da regulamentação e um redobramento das taxas baixas em toda a curva de rendimento. A crise da Covid veio completamente de surpresa, mas a resposta foi repetir as mesmas medidas, se bem que em escala ainda maior. Desta vez, porém, a imensa expansão das reservas dos bancos centrais de fato elevou os agregados monetários mais amplos. Não é grande surpresa, portanto, que a combinação entre desordenamento no “supply-side” e a forte demanda atual esteja gerando inflação “de surpresa”.

Como essa história pode evoluir, portanto? Não existe motivo forte para esperar que a desigualdade de renda, o propulsor fundamental da poupança excessiva atual, seja revertida, embora ela possa se estabilizar. Existe um excelente motivo para um grande boom de investimento, especialmente relacionado à mudança no clima. Mas isso não vai ocorrer sem decisões políticas coerentes, determinadas, inteligentes e globalmente conscientes, e não podemos contar com que qualquer dessas coisas aconteça, embora devamos ter a esperança de que o façam. Assim, em médio a longo prazo, a estagnação secular provavelmente deve voltar, a menos que a desigualdade de renda caia.

O curto prazo é mais difícil de interpretar, mas, se as coisas derem errado, as consequências serão perturbadoras, mesmo para o médio prazo. Em seu discurso em Jackson Hole, Jay Powell, o chairman do Fed, insistiu em que tudo está sob controle. A disparada na inflação de fato pegou quase todo mundo de surpresa. A preocupação deve ser a de que os choques de preços persistam e sejam transformados em expectativas inflacionárias, que só poderiam ser revertidas por meio de um período de taxas de juros de curto prazo significativamente mais altas. Isso causaria estagflação, o que criaria dilemas dolorosos para os bancos centrais e certamente causaria problemas devastadores para os devedores mais fracos, especialmente as economias emergentes pesadamente endividadas, mas não só elas.

As políticas excepcionais de 2020 já não podem ser justificadas. Dadas as taxas de juros de curto prazo muito baixas e as políticas fiscais de apoio em vigor no momento, é difícil ver por que compras de ativos em escala tão grande deveriam continuar, igualmente. Temos dinheiro mais que suficiente no momento, e o rendimento dos títulos precisa subir um pouquinho. Quando os fatos mudam, os bancos centrais precisam mudar de ideia. E a hora para isso é agora.

Tradução de Paulo Migliacci

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