Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Descrição de chapéu Financial Times

EUA sentem arrependimento do comprador pelo mundo que construíram

Jake Sullivan pediu uma nova 'política externa para a classe média', mas o que isso realmente significa?

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Financial Times

Quando os Estados Unidos falam, o mundo escuta. Afinal, é a potência mais influente do mundo. Isso não se deve apenas a seu tamanho e sua riqueza, mas também à potência de suas alianças e ao seu papel central na criação das instituições e princípios da ordem atual.

O país desempenhou um papel decisivo na criação das instituições de Bretton Woods, do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio e da OMC (Organização Mundial do Comércio). Promoveu oito rodadas sucessivas de negociações comerciais multilaterais. Ganhou a Guerra Fria contra a União Soviética. E desde o início dos anos 1980 pressionou por uma abertura ampla e profunda da economia mundial, acolhendo a China na OMC em 2001. Quer gostemos quer não, todos vivemos no mundo que os Estados Unidos fizeram.

Agora, sofrendo o arrependimento do comprador, decidiu refazê-lo. Janet Yellen, a secretária do Tesouro, delineou os aspectos econômicos da nova visão dos EUA num discurso proferido em 20 de abril. Sete dias depois, Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional de Joe Biden, fez um discurso ainda mais amplo, embora complementar, sobre "Renovar a liderança econômica americana".

O conselheiro de segurança nacional de Joe Biden, Jake Sullivan - Kevin Lamarque - 24.abr.2023/Reuters

Ele representou um repúdio às políticas passadas. Poderia ser visto apenas como um retorno ao intervencionismo de Alexander Hamilton. No entanto, desta vez, a agenda não é para um país nascente, mas para a potência dominante no mundo.

O que Sullivan estava dizendo? E o que isso pode significar para os EUA e para o mundo?

O ponto de partida é doméstico. Assim, uma "economia global em mudança deixou muitos trabalhadores americanos e suas comunidades para trás. Uma crise financeira abalou a classe média. Uma pandemia expôs a fragilidade de nossas cadeias de suprimentos. Um clima em mudança ameaçou vidas e meios de subsistência. A invasão da Ucrânia pela Rússia destacou o risco de dependência excessiva".

Mais especificamente, o governo se vê diante de quatro grandes desafios: o esvaziamento da base industrial; a ascensão de um concorrente em geopolítica e segurança; a aceleração da crise climática; e o impacto da crescente desigualdade na própria democracia.

Em uma frase-chave, a resposta é ser "uma política externa para a classe média". O que, então, isso deve significar?

Primeiro, uma "estratégia industrial americana moderna", que apoie setores considerados "fundamentais para o crescimento econômico" e também "estratégicos do ponto de vista da segurança nacional". Em segundo lugar, a cooperação "com nossos parceiros para garantir que eles também desenvolvam capacidade, resiliência e inclusão". Em terceiro, "ir além dos acordos comerciais tradicionais para novas parcerias econômicas internacionais inovadoras, focadas nos principais desafios de nosso tempo".

Isso inclui a criação de cadeias de suprimentos diversificadas e resilientes, mobilizar investimentos públicos e privados para "a transição para energia limpa", garantir "confiança, segurança e abertura em nossa infraestrutura digital", interromper uma corrida para baixo na tributação corporativa, aprimorar as proteções para trabalhadores e o meio ambiente e combater a corrupção.

Quarto, "mobilizar trilhões em investimentos em economias emergentes". Quinto, um plano para proteger "tecnologias fundamentais com um pequeno quintal e uma cerca alta". Assim: "Implementamos restrições cuidadosamente adequadas às exportações de tecnologia de semicondutores mais avançada para a China. Essas restrições têm como premissa preocupações diretas de segurança nacional. Os principais aliados e parceiros seguiram o exemplo". Também inclui "melhorar a triagem de investimentos estrangeiros em áreas críticas relevantes para a segurança nacional". Estas, insiste Sullivan, são "medidas específicas", não um "bloqueio tecnológico".

Esta é, de fato, uma mudança fundamental nos objetivos e meios da política econômica dos Estados Unidos. Mas tanto a profundidade quanto a durabilidade dessa mudança dependem de até que ponto ela reflete um novo consenso americano. Onde é nacionalista e protecionista, certamente já o faz. Onde minimiza as prioridades dos negócios e o papel dos mercados, também pode ser durável. Os republicanos populistas de Donald Trump certamente poderiam aceitar quase tudo isso.

Os novos objetivos fazem sentido? Em alguns aspectos fundamentais, sim. Tendo acabado de publicar um livro chamado "A Crise do Capitalismo Democrático", concordo que a raiva e a decepção do que os americanos chamam de "classe média" é uma realidade perigosa. Também concordo que o clima é uma prioridade importante, as cadeias de abastecimento precisam ser resilientes e a segurança nacional é uma preocupação legítima na política comercial. A Rússia certamente nos ensinou isso.

No entanto, isso realmente funcionará para tornar os americanos e o resto do mundo melhores e mais seguros? Uma dúvida diz respeito à escala. Sullivan afirma, por exemplo, que "estima-se que o total de capital público e investimento privado da agenda do presidente Biden chegará a cerca de US$ 3,5 trilhões na próxima década". Isso é no máximo 1,4% do produto interno bruto nesse período, o que é muito pouco para ser transformador. Outra é que é difícil fazer a política industrial funcionar, especialmente para economias na fronteira tecnológica. Outra diz respeito a quão perturbadora será essa nova abordagem para as relações econômicas e políticas com o resto do mundo, notadamente (mas não apenas) com a China, especialmente no comércio.

Em particular, será difícil distinguir tecnologias puramente comerciais daquelas com implicações de segurança. Também será complicado distinguir entre os amigos e os inimigos dos EUA, como mostram as reações globais à invasão da Ucrânia pela Rússia. Não menos importante, será difícil convencer a China de que este não é o começo de uma guerra econômica contra ela. No entanto, a China já tem muitas cartas nessa luta, como observou Graham Allison, de Harvard, no caso dos painéis solares. As terras raras são outro caso.

Acima de tudo, a nova abordagem só funcionará se conduzir a um mundo mais próspero, pacífico e estável. Se levar a um mundo fraturado, um fracasso ambiental ou um conflito total, falhará em seus próprios termos. Seus autores precisam ter cuidado ao calibrar a execução de sua nova estratégia. Poderia sair pela culatra, e feio.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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