Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

Relações entre Estados Unidos e China entraram em uma era nova e assustadora

Cooperação econômica com Pequim será mais difícil do que sugerem os recentes discursos de Janet Yellen e Ursula von der Leyen

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A relação entre os Estados Unidos e a China tem o potencial de determinar o destino da humanidade no século 21. Determinará se haverá paz, prosperidade e proteção ao meio ambiente do planeta, ou o oposto. Caso o oposto aconteça, os historiadores do futuro (se é que ainda existirão) certamente ficarão maravilhados com a incapacidade da espécie humana para se proteger de sua própria estupidez. Mas hoje, felizmente, ainda podemos agir para evitar a catástrofe. Isto é verdade em muitos domínios. Entre eles, a economia. Como, então, as relações econômicas poderiam ser geridas da melhor forma no futuro cada vez mais difícil que enfrentamos?

Janet Yellen, secretária do Tesouro dos Estados Unidos, e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, fizeram recentemente declarações muito ponderadas sobre esse assunto. Mas será que aquilo que elas descrevem é viável? Quanto a isso, infelizmente, tenho dúvidas.

Os presidentes da China, Xi Jinping, e dos EUA, Joe Biden durante encontro do G20 - Saul Loeb - 15.nov.22/AFP

Yellen apresenta um plano para aquilo que define como um "compromisso construtivo". Ele tem três elementos: primeiro, "garantir os nossos interesses de segurança nacional e os dos nossos aliados e parceiros, e proteger os direitos humanos"; segundo, "procurar uma relação econômica saudável" baseada em uma concorrência "justa"; e, terceiro, "procurar cooperação nos desafios mundiais urgentes dos nossos dias". Em sua análise do primeiro elemento, a secretária salienta que "as ações de segurança nacional dos EUA não se destinam a obter uma vantagem econômica competitiva ou a sufocar a modernização econômica e tecnológica da China". No entanto, a dificuldade é que, na China, as coisas de maneira alguma são vistas desse modo, como aprendi durante uma breve estadia recente em Pequim.

A discussão de Yellen sobre a segurança como elemento crucial revela a situação pode ser problemática. Ela salienta, por exemplo, a preocupação dos Estados Unidos com a parceria e o apoio "sem limites" da China à Rússia, e adverte contra o fornecimento de apoio material ou de ajuda para contornar as sanções. Ela ressalta igualmente as preocupações dos Estados Unidos com relação aos direitos humanos, incluindo aqueles que os chineses consideram como questões puramente internas.

Apesar dessas preocupações, Yellen afirma que "não estamos tentando 'dissociar' nossa economia da economia chinesa". Pelo contrário, uma "China em crescimento e que cumpra as regras pode ser benéfica para os Estados Unidos". Afinal de contas, ela nos aponta, os Estados Unidos comerciam mais com a China do que com qualquer outro país, exceto o Canadá e o México. No entanto, acrescenta, os Estados Unidos se opõem às muitas práticas comerciais "injustas" da China e continuarão a "tomar medidas coordenadas com os nossos aliados e parceiros, em resposta". Ações relacionadas às cadeias de suprimento, entre as quais o "friendshoring" [transferência de produção a países amigos], são um dos resultados.

A abordagem de Von der Leyen é complementar. Ela também afirma que "a dissociação não é viável, desejável ou mesmo prática para a Europa". No entanto, argumenta, a China "agora virou a página da era da 'reforma e abertura' e está entrando em uma nova era de 'segurança e controle'". O foco de Von der Leyen, tal como o dos Estados Unidos, é a "redução dos riscos" no relacionamento. Uma das formas é eliminar as vulnerabilidades e preservar a autonomia estratégica. Tal como nos Estados Unidos, isto implica investimentos estratégicos em determinados setores-chave. Outra forma é a utilização ativa de instrumentos de defesa comercial. Outra ainda é inventar novos instrumentos para garantir que o capital e o conhecimento das empresas europeias "não sejam utilizados para reforçar as capacidades militares e de informação daqueles que são também os nossos rivais sistêmicos". Isso poderia incluir controles do investimento externo. Uma última via é o aprofundamento da cooperação com os parceiros.

Em um livro recente, e notavelmente pessimista, "The Avoidable War", Kevin Rudd, antigo primeiro-ministro da Austrália, defende aquilo a que chama de "competição estratégica administrada" entre os Estados Unidos e a China de Xi Jinping. Seria possível argumentar que Yellen e Von der Leyen estão dando corpo aos elementos econômicos dessa abordagem.

Se for esse o caso, é pouco provável que as propostas deem resultado. Os esforços unilaterais de uma das partes para se sentir mais segura provavelmente tornarão a outra parte mais insegura. Isso é evidentemente verdade no domínio da segurança, definido de forma restrita. Se um dos lados tiver vantagem em uma tecnologia fundamental, o outro será vulnerável. Mas também é verdade no domínio econômico. A recusa de vender tecnologias ou recursos estrategicamente vitais —ou mesmo a possibilidade de que essa recusa possa acontecer em um dado momento no futuro— fará com que o outro lado se sinta economicamente inseguro. De fato, ficou claro em Pequim que os chineses bem informados acreditam que os Estados Unidos pretendem, na prática, impedir a ascensão econômica de seu país. Os controles dos Estados Unidos sobre as exportações de chips podem ter sido concebidos para reforçar a segurança americana. Mas são também um entrave para a economia da China. As duas coisas não podem ser separadas.

Também não é provável que esse conflito se torne mais fácil. Avaliadas sob critérios comparáveis (por "paridade de poder aquisitivo"), as economias dos Estados Unidos e dos seus aliados continuam a ser cerca de 80% maiores do que as da China e Rússia somadas. No entanto, a China continua a ser um país pobre: em termos de paridade de poder aquisitivo, a renda per capita chinesa em 2022 continuava inferior a 30% da renda per capita americana. Suponhamos que o país consiga alcançar a posição relativa atual da Coreia do Sul. Sua economia, no caso, teria quase a metade do tamanho das economias dos Estados Unidos e da União Europeia combinadas. Será que isso vai acontecer? Provavelmente não. Mas, tendo em conta os resultados anteriores, não é uma possibilidade que possa ser excluída. De qualquer modo, a China já tem uma economia potente, um papel importante no comércio mundial, e um exército enorme.

A era de confrontação estratégica em que entramos é assustadora. Isso é especialmente verdade para aqueles de nós que querem que os ideais de liberdade individual e democracia prosperem, ao mesmo tempo que a cooperação com a China na manutenção da paz e da prosperidade, e na proteção do nosso precioso planeta. De alguma forma, temos de cooperar e competir, evitando simultaneamente um conflito militar. O nosso ponto de partida deve ser conseguir a maior transparência possível com relação aos nossos objetivos e planos. Aprendemos a necessidade de agir assim depois da crise dos mísseis de Cuba em 1962. Mas precisaremos de muito mais do que isso e, provavelmente, durante mais tempo. Poucos líderes na história arcaram com um fardo moral mais pesado do que os atuais.

Tradução de Paulo Migliacci

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