Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Descrição de chapéu Financial Times partido democrata

Os Estados Unidos são prejudicados pelo teatro do absurdo sobre o teto da dívida

Única razão pela qual um calote é concebível é a profundidade do desacordo no país

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Financial Times

Como avaliar a possibilidade de um calote voluntário por parte do país mais importante do mundo? Será realmente provável que algo tão insano aconteça? Quais seriam as consequências, caso acontecesse?

Essas perguntas são impossíveis de responder. Isso não se deve ao fato de o evento ser um "cisne negro", ou seja, inimaginável. Em lugar disso, a inadimplência dos EUA se enquadra em uma ampla categoria de "incógnitas conhecidas", ou seja, eventos impossíveis de prever, e de alto impacto. A crise financeira de 2007-09, a pandemia e a invasão da Ucrânia pela Rússia foram eventos desse tipo.

É impossível prever eventos como esse devido à sua raridade e à complexidade de suas causas. Não sabemos o suficiente para prever quando e de que forma surgirá a próxima pandemia, quando e onde alguém iniciará uma guerra, ou se os políticos dos EUA destruirão o crédito acumulado por seu país durante séculos. No entanto, sabemos que esses choques acontecem. Eles fazem parte de nossa realidade.

O presidente dos EUA, Joe Biden - Evelyn Hockstein - 16.mai.2023/Reuters

Então, o que dizer sobre essa ameaça específica? Não é normal que um país tenha um orçamento legislado e um procedimento separado de autorização para a dívida que esse orçamento acarreta. Para os Estados Unidos, isso foi produto de necessidades de guerra: antes de 1917, o Congresso tinha que autorizar cada empréstimo individual. E até hoje, o limite de dívida dos Estados Unidos sempre foi aumentado quando necessário. Isso aparentemente aconteceu cerca de 90 vezes.

Pessoas sensatas concluiriam que o teto é um absurdo. Mas ele não é irrelevante. Cada vez mais, os republicanos consideram o limite de dívidas como uma alavanca que lhes permite limitar gastos – mas não, é preciso ressaltar, os déficits causados por cortes de impostos. Eles aceitaram déficits alegremente durante os governos de George W. Bush e Donald Trump.

Portanto, como observa um texto de explicação da Brookings Institution: "Nas últimas três décadas, o limite precipitou batalhas políticas durante as quais alguns legisladores usaram a votação sobre o teto da dívida para tentar desacelerar o crescimento dos gastos federais". Isso aconteceu com Barack Obama em 2011 e com Joe Biden em 2021, antes de o teto da dívida ser elevado para US$ 31,4 trilhões, onde está agora. A necessidade de elevá-lo uma vez mais se tornou muito urgente porque o governo federal pode ficar sem dinheiro em junho.

Um calote pode ocorrer? A resposta é "sim". Um dos motivos é que os partidos estão muito distantes. As propostas dos republicanos imporiam um corte de 47% no total de gastos discricionários reais não relacionados às forças armadas, entre 2024 e 2033. Essa é uma lacuna enorme a ser preenchida, mesmo que a música ambiente possa estar melhorando. O outro motivo é que os principais participantes podem sentir que não têm incentivo para fazer concessões. Os republicanos são muito facciosos, alguns têm opiniões extremamente radicais, e muitos parecem achar que até mesmo um desastre econômico prejudicaria só o governo. Enquanto isso, os democratas podem achar que ceder em relação aos gastos é doloroso demais. Em jogos de roleta russa como esse, desastres acontecem.

Há quem espere que a situação ainda possa ser administrada, pelo menos por algum tempo. O plano de 2011 teria envolvido a manutenção dos pagamentos de juros e do principal, mas postergar o pagamento a agências, empreiteiros, beneficiários da previdência social e provedores do Medicare. Propostas mais radicais envolvem uma moeda de platina de US$ 1 trilhão ou o recurso à 14ª emenda da constituição americana, que afirma: "A validade da dívida pública dos Estados Unidos, autorizada por lei... não deve ser questionada". Com a Suprema Corte atual, é de duvidar que isso funcione.

Pense em todas as pessoas, instituições e países que detêm títulos do Tesouro americano como os ativos mais seguros e líquidos do mundo. Mesmo uma pequena interrupção nos pagamentos poderia ser devastadora para a confiança, não apenas nos títulos do Tesouro, mas nos mercados de capitais. A possibilidade de inadimplência pode ser desconsiderada como irreal. A experiência de uma inadimplência certamente seria muito real.

Além disso, o calote seria um grande choque para a confiança nos Estados Unidos. Michael Strain, do American Enterprise Institute, uma instituição de pesquisa conservadora, afirma que "os líderes estrangeiros e os investidores mundiais olhariam para os Estados Unidos e veriam um retrato condenatório. Nesse sistema falido, muitas autoridades eleitas não respeitam os resultados de uma eleição presidencial e permitem que diferenças políticas e ideológicas impeçam o cumprimento das obrigações financeiras do governo. Os investidores pensariam melhor sobre a alocação de capital para entidades dos Estados Unidos, e o papel dos Estados Unidos como um farol dos valores liberais - incluindo os mercados livres - seria seriamente prejudicado". Para resumir de modo mais simples: eles concluiriam que os lunáticos assumiram o controle do hospício.

Mesmo que o pior seja evitado desta vez, a repetição desse jogo de roleta russa torna cumulativamente mais provável que um crash de fato aconteça. Glenn Hubbard, ex-presidente do Conselho de Consultores Econômicos da Casa Branca no governo Bush, fez sugestões razoáveis. O que é necessário, de fato, é uma solução de longo prazo na qual a teatralidade do teto da dívida seja substituída por um orçamento coerente de longo prazo. A trajetória atual da dívida dos Estados Unidos torna propostas como essas necessárias.

No entanto, contra isso está o fato de que os esforços de presidentes democratas, como Bill Clinton e Obama, para reduzir os déficits prospectivos só serviram para permitir que os republicanos baixassem os impostos quando voltaram ao poder. E, desse modo, será que haverá vontade política para colocar as necessidades do país acima das necessidades partidárias? E tampouco podemos definir a situação como um fracasso duplo. A culpa cabe pesadamente aos republicanos. Usam a ameaça de um calote para conseguir cortes de gastos e impostos, mas não do déficit, e por isso foram incapazes de garantir vitórias eleitorais decisivas.

No final das contas, "é tudo política, estúpido". A única razão pela qual um calote é concebível é a profundidade da discordância no país e, portanto, no Congresso. Se os Estados Unidos estivessem menos divididos, o teto da dívida não teria importância. Mas nos Estados Unidos divididos de hoje, ele importa. Enquanto as divisões continuarem, a ameaça de um calote também continuará. Mesmo que um acordo temporário seja obtido, é provável que a ameaça retorne em breve.

Tradução de Paulo Migliacci

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